A reação de mãe Netinha

A reação de mãe Netinha
A reação de mãe Netinha

A história que vou contar para vocês era passada de pais para filhos, de vizinho para vizinho na Salvador dos anos 1950 a 1970. É sobre a controvérsia entre o estado da Bahia contra a mãe de santo, dona Netinha. 

Naquele tempo, havia um tipo de estrutura de controle da população negra e pobre que se denominava “Jogos e Costumes”.

O pessoal da Jogos e Costumes era responsável por coibir a circulação da comunidade pobre e negra na cidade, além de aplicar penalidades, independente de autorização judicial, sobre os cidadãos que o agente do Estado considerasse delinquente. 

Foi então que apareceu um delegado chamado Peçanha, que fora indicado por alguns deputados para fazer um trabalho de limpeza na cidade. Quem fosse apanhado em manifestações de candomblé seria preso e poderia apanhar muito quando chegasse à delegacia.

Os filhos de santo preocupados com a situação avisaram à mãe Netinha da decisão do governo e da existência de Peçanha. Todos estavam atônitos e com medo de realizar os preceitos afro-brasileiros, mas os adeptos do candomblé tinham fé nos orixás e acreditavam em mãe Netinha.

Uma celebração foi organizada, e o povo ficou sabendo dia e hora do acontecimento. Peçanha ficou irritado com aquela desobediência e designou o sargento Melquíades para comandar um grupo de dez homens para quebrar todo o terreiro durante a festa e levar todo mundo preso.

No dia da celebração Melquíades pegou os melhores policiais e partiu para empreitada. Chegando lá, o grupo se dividiu e foi procurar o tal terreiro. As radiopatrulhas percorreram todo o bairro e não conseguiam identificar onde era o lugar da celebração. Quanto mais tempo demorava de encontrar o terreiro mais o sargento se enchia de raiva.

Próximo da meia-noite, a festa estava reluzente, e povo de santo estava em profunda meditação. Foi quando Ananias chegou ao terreiro. Ele era ogã da casa e um filho querido de mãe Netinha. Ananias tinha visto as radiopatrulhas e estava muito ansioso.

Mãe Netinha ouviu o filho querido e avisou que os policiais só encontrariam o terreiro depois da meia-noite e meia, pois antes os adeptos iriam concluir alguns rituais.

Os policiais já estavam zonzos, cansados de tanto procurar a casa de candomblé. Por volta de uma e meia da manhã, Mãe Netinha anunciou ao grupo que os convidados estavam chegando. Melquíades percebeu que os carros passaram várias vezes pelo terreiro, mas só ouviam um som distante. Agora o som dos tambores eram bem alto. O terreiro sempre esteve ali na cara deles!

O sargento sacou a arma para dar um tiro de advertência quando estivesse dentro do terreiro. Orientou a todos os soldados que usassem o cassetete para bater em todos indistintamente, depois fariam perguntas.

Os policiais avançaram contra a casa, alguém deu um pontapé na porta e houve um silêncio geral. Melquíades, do lado de cima da escada, apontou o revólver para cima e tentou dá um tiro. O revólver travou, e o sargento iniciou um trabalho de transe. Se dirigiu à mãe de santo, beijou-lhe as mãos e começou a dançar. Da mesma forma os policiais começaram a dançar. Alguns deles usavam o cassetete como instrumentos de maculelê. Mãe Netinha olhava para os convidados tranquila e serena. O povo não riu da situação. Todos assistiam abismados.

Aos poucos os transes começaram a cessar, e os policiais foram voltando a si. Ninguém nunca tinha visto uma cena daquela: aqueles homens saindo da casa como se fosse um time de futebol em uma partida perdida.

Dias depois, o sargento foi transferido para uma cidade interiorana, onde ninguém o conhecia. O delegado Peçanha foi promovido, pois quem ocupa cargo de importância nesta terra, nunca sai perdendo dinheiro nos momentos de controvérsias.

Muita gente diz que Melquíades voltou ao terreiro, quando se aposentou, e se tornou ogã da casa de santo do acontecimento mais emblemático que se tem notícia na velha Bahia. Mas este fato a gente não pôde verificar.

Assim aquelas histórias foram formando o meu repertório de vida. Repertório de coisas inexplicáveis do limiar entre o real e o imaginário.

E se você quiser que conte outra…

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Publicado por Cleonilton Souza

Educador nas áreas de educação, tecnologias e linguagens.