
A gente está acostumado a comentar e categorizar como clássico produtos de filmes, discos e livros, o que geralmente não acontece quando o produto cultural vem da televisão, como as séries de TV.
Primeiro por que costumamos classificar a televisão como indústria cultural, o que acaba por nos afastar de produtos oriundos desse meio de comunicação de massa quando o assunto é arte. Depois por que estamos perdendo cada vez mais o gosto pelas narrativas longas, afinal de contas novelas e séries são elementos vinculados à sociedade de massa e acabam por serem taxados de produtos de consumo, distanciados das artes.
Mas obras como Dexter, Mad Men e Breaking Bad são ícones nesse tipo híbrido diferenciado de produção comercial com arte. Elas são as séries de TV de consumo, mas que buscam se aproximar dos produtos da chamada “arte”.
Mesmo que muitos não rotulem esses produtos culturais como obras de arte é necessário apreciá-los culturalmente, e é o que faremos nas próximas linhas comentando um pouco da série Dexter.
Dexter Morgan é um personagem controverso, pois possui uma dupla personalidade. Daquele tipo de O médico e o monstro, adaptado para o terceiro milênio.
De um lado Dexter é um analista forense muito bem reconhecido entre os pares. Casou e teve filho, ajudou na criação dos filhos da esposa; é um irmão solícito e quando pode participa das atividades de lazer com os colegas de trabalho.
Do outro lado, Dexter utiliza o conhecimento forense e o que aprendeu com o pai policial para assassinar pessoas. Os assassinatos são violentos e acompanhados por um ritual bem peculiar.
Em Dexter há múltiplos em um homem: filho adotivo, filho de mãe solteira, esposo, irmão, analista forense. Tudo isto existe na mesma pessoa, um ser que tem uma vida sob os contrastes de ser um homem subordinado aos acordos sociais e também ser um criminoso, justiceiro, um miliciano solitário, movido por causas interseccionadas entre o social e o intrapsíquico.
Quando nos encontramos com Dexter, ele já cometeu muitos crimes trágicos, de forma fria e calculista. Ele é o tipo de personagem que fascina muita gente que aprecia filmes de violência, mas a narrativa contempla bem mais coisas em Dexter do que a mera violência.
Para atrair o público, Dexter tem um motivo para agir com tanta violência: as pessoas que ele ataca são, geralmente, pessoas más, de comportamento desviantes. Na verdade, as vítimas possuem muitos pontos em comum com Dexter Morgan, mas o protagonista não vai contra as pessoas consideradas boas, ele só ataca os considerados desviados da sociedade. Essa opção de ir contra os maus faz com que Dexter seja compreendido de maneira diferente dos indivíduos da marginália e se torne uma espécie de “herói”.
Não devemos esquecer que existe dentro da narrativa estadunidense um conjunto de obras em torno de personagens justiceiros. Personagens que buscam fazer justiça com as próprias mãos, cabeças e corações.
Hoje, início de século XXI, provavelmente, a rede cinematográfica que distribui mais narrativas de super-heróis seja a estadunidense. Por aqui o leitor já começa a perceber que a narrativa é construída para que o espectador sempre perdoe as atrocidades de Dexter e fique comovido pelas motivações criadas pelo personagem. Dexter é um jogo psicológico muito bem organizado, que brinca o tempo todo com os valores do espectador.
Quando observado de perto, o espectador verá um homem sem amigos, solitário, de hábitos ordenados. Um homem que quando se esconde dos outros pode se ver em pleno florescimento.
Dexter sobrevive entre a demência e a sanidade. Ele precisa se curar, se conhecer mais; pensar e falar dos próprios segredos. Enfim, aprender a navegar entre a luz e a escuridão e educar os próprios sentimentos.
Interessante é observar durante a narrativa que quanto mais Dexter se aproxima dos próprios sentimentos mais o personagem se descobre como gente e mais o caos emerge como regulador da vida.
Mesmo a série tendo um personagem tão denso, é preciso ressaltar o papel de Deb Morgan, a personagem irmã de Dexter. Deb é uma mulher-homem. Ela travessa os gêneros. Ela adora dormir com os homens, mas não se deixa submeter ao patriarcal. Ela fala alto, xinga muito, usa roupas desajeitas.
Ao mesmo tempo ela deixa os sentimentos em transbordos, constituindo-se como uma personagem controversa, por não se deixar ser subjugada pela condição de ser mulher. Deb também precisa se encontrar. E é justamente essa busca que a faz uma personagem tão fascinante. Deb é uma coadjuvante de peso na história. A personagem mexe como nossos sentimentos: ela vai crescendo a cada capítulo.
Deb está na narrativa para provocar, tocar as pessoas. Deb é o caos e a organização ao mesmo tempo. No fundo é como se os dois personagens estivessem confabulando o tempo todo por meio das inconsciências. Daí de eles serem irmãos. Irmãos de criação, irmãos de convivência.
Pelo até aqui narrado, Dexter possui elementos suficientes para manter a atenção do espectador durante muitas temporadas. Talvez, você, leitor, possa captar mais coisas e trazer mais insumos para a gente aprender sobre as formas de narrativas dessa história desafiadora e assim podermos discutirmos mais sobre o fazer artístico destes nossos tempos.
Até a próxima!
Sobre a série
O que é isso? Série de TV
Quem editou? Showtime
Quando aconteceu? 2006-2013
Mais alguma coisa? Existe possibilidade de haver nova temporada em 2021.
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