
Ah, como eu gostava de passar o dia jogando bola em frente de casa durante as férias! Terminadas as férias, eu sempre realizava todos os afazeres domésticos e atividades da escola cedo para minha mãe deixar eu ir para rua.
Naquele tempo minha mãe já me preparava para o futuro e dizia que os afazeres domésticos não eram só para as mulheres e que os homens deveriam ajudar em casa também. Só vim dar valor àquele conselho quando tinha meus 21 anos e fui morar com uns colegas de trabalho. Saber cozinhar, fazer compras e limpar a casa eram um diferencial. Fiquei autônomo cedo e me virava com facilidade quando precisava ficar sozinho em casa.
Ainda criança, uma das diversões preferidas era ir jogar futebol. Em uma dessas partidas, o meu time ganhava de 3 a 1 e eu já não enxergava o que estava em volta. Chutava a bola de um lado para o outro; o importante era fazer mais um gol.
Foi em uma daquelas empolgações que chutei a bola com tanta força que a redonda foi bater direto na bolsa de compras de uma senhora. Era a mãe Netinha que vinha apressada para o preparo do caruru de São Cosme e São Damião.
Quando a bola tocou nas pernas de dona Netinha e depois saiu quicando, todos os meninos correram. Fiquei lá sozinho, olhando atônito para aquela mulher que eu tinha tanto medo. Todo mundo temia dona Netinha. Não posso dizer que era respeito, pois quando a velha passava todo mundo dava bom dia, boa tarde ou boa noite, mas só era ela sumir na esquina que as língua das vizinhas ficavam soltas, o que fazia com as crianças ficassem mortas de medo daquela senhora sempre vestida de branco.
Um saco com gengibre caiu no chão. Dona Netinha calmamente pegou a iguaria com uma mão e segurou a bola com a outra, enquanto a sacola de compras ficou caída no chão. Ela parou bem na minha frente e, sem dizer nada, me entregou a bola.
O coração acelerado, batia forte e produzia um ruído parecido com um trovão. A mãe de santo foi embora, e os meninos vieram assustados me dizer que eu não poderia ir comer caruru na casa de dona Netinha mais tarde, pois tinha jogado o caruru no chão.
Fiquei muito triste, pois adorava caruru. E caruru era o único motivador que me tirava o medo da mãe de santo e das coisas do candomblé.
Passei o resto do dia em casa, cabisbaixo, nem quis ouvir a rádio FM, a grande novidade de transmissão radiofônica daquele final de década de 1970.
De repente alguém bateu na porta. Era Firmino, ogã da casa de dona Netinha, que veio conversar com minha mãe. O medo aumentou. E agora? Como eu explicaria o problema da bola?
Firmino falou baixinho com minha mãe e saiu. Minha mãe deu um grito. Quando cheguei na frente da porta, ela disse para eu ir me arrumar correndo, pois o caruru iria começar e faltava um menino com até sete anos para compor a balbúrdia para os santos.
Desci correndo a ladeira lá de casa e subi igual a uma raposa a ladeira da casa de santo. Chegando lá, todos me olharam com ar de alegria, pois a balbúrdia poderia começar.
Vou confessar para vocês: aquele foi um dia gostoso de ser vivido. Fiquei todo melado de azeite com aquele pega pega de comida. Nem sentia mais o medo diante daquela gente tão acolhedora.
No outro dia, na reunião que fazíamos antes do baba, a conversa era só sobre o caruru. Estávamos numa grande empolgação, quando a dona Netinha passou perto da gente, vinda da feira de São Joaquim. Fizemos silêncio. Ela olhou sorrateiramente para a turma e prosseguiu. Um garoto olhava para o outro bem atônito, mas depois todos riram e continuaram a conversa até o início da noite. E naquele dia não houve mais futebol.
E quem quiser que conte outra…
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