
Sem uma bola de cristal ou uma cartomante para dizer quem eu sou e o que será do amanhã, penso no tempo presente, em que cinco bilhões de pessoas já tiveram acesso à internet no mundo e no entanto quase três bilhões de pessoas nem sabem o que é isto. Isto é um problema macroestrutural para se começar a pensar na aprendizagem do amanhã.
No âmbito técnico, precisamos refletir sobre a questão das interfaces gráficas, uma invenção humana para facilitar a mediação sociotécnica na cultura digital, que torna mais “amigável” (termo este utilizado pelos arquitetos da informação) os usos dos objetos técnicos.
Com a interface gráfica, a maioria dos humanos tem uma certa facilidade de aprender a lidar com os softwares e hardwares existentes, desde que estejam em ambientes sociotécnicos com estrutura suficiente de usos e acessos.
Há um segundo nível de aprendizagem em ambientes tecnológicos que é construído por meio de linhas e códigos, de criação de imagens técnicas, segundo Vilém Flusser, que não se configura como algo de fácil aprendizagem.
Por exemplo, não é fácil compreender o funcionamento de algoritmos, big data e internet das coisas, como não é fácil detectar e interpretar inteligência artificial, ou mesmo identificar quando estamos nos comunicando com humanos ou não humanos em uma comunicação sociotécnica, bem como não é fácil configurar os objetos técnicos para navegarmos na internet protegendo nossa privacidade.
Segundo a pesquisadora Shoshana Zuboff, existe uma divisão de aprendizagem na sociedade, em que há uma conjuntura histórico-político-econômico-cultural de estabelecimento de quem tem acesso ao conhecimento. Para Zuboff “As perguntas essenciais que nos deparamos a cada instante são: Quem sabe? Quem decide? Quem decide quem decide?” (ZUBOFF, 2020, p. 215). São perguntas essenciais que precisamos fazer quando pensamos sobre a aprendizagem do amanhã.
Será um desafio para aprendizagem do amanhã pesquisar as interações humanos-não humanos, sem a intermediação de outros humanos nas interações educacionais, uma vez que já estivemos envolvidos em dois discursos pedagógicos que voltaram com muita força nesta segunda década do nosso século. O primeiro é o discurso de viés Liberalista, em que basta dar condições mínimas que as pessoas aprendam livremente. Aqui pode ser até aquele cidadão cheio de boas intenções do outro lado da tela, mas sem conhecimentos pedagógicos suficientes, para sustentar um processo de educação que precisa ser permanente e necessita também dos espaços formais da escola para se realizar; o segundo discurso é o Tecnicista, em que basta uma boa estrutura tecnológica montada que a aprendizagem será facilitada. Ambos deixam em plano secundário a participação de educadores humanos no processo educacional. Aqui eu pergunto: já podemos dispensar a presença de educadores nas relações educacionais, no âmbito do ensino, e nos dedicarmos somente a processos de aprendizagem automatizada?
As pessoas têm mais facilidade mesmo de aprender a lidar com as tecnologias devido a processos de usabilidade e interfaces gráficas mais funcionais, que foram criados a partir de dados comportamentais dos humanos. Então temos de aproveitar mesmo essas dimensões facilitadoras de interfaces com a técnica, mas precisamos saber que existe uma macroestrutura sociocultural, que não age somente cerceando o acesso ao capital, mas interfere sobremaneira na forma como aprendemos a lidar com a técnica.
E assim voltamos às provocações do início deste texto: podemos desvendar o futuro da aprendizagem por meio de uma bola de cristal? Creio que a bola de cristal pode refletir uma realidade um tanto distante do real. Precisamos genuinamente criar aproximações com o real diretamente no contexto desse real. E a cartomante? Ah, isto é coisa para os contos de Machado de Assis.
Leia+
- A cartomante, de Machado de Assis
- A era do capitalismo de vigilância – a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder, de Shoshana Zuboff, editora Intrínseca, 2020
- O universo da imagens técnicas – elogio da superficialidade, de Vilém Flusser, editora Annablume, 2008
- Filosofia da caixa preta – ensaios para uma filosofia da fotografia, de Vilém Flusser, editora É Realizações, 2018
Até a próxima!
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