
O algoritmo do Facebook não descansa e está sempre me sugerindo o desafio de escrever sobre mim na mídia social. Quando entro na plataforma me deparo com a famosa pergunta: “O que você está pensando?”. Ele quer conhecer o mais profundo do meu íntimo, aquelas coisas que até bem pouco tempo eu só confiava a mim mesmo.
Engraçado como a gente acaba sendo direcionado e escreve para o infinito, ou seja, para pessoas que talvez nunca venhamos a conhecer, motivado pela sugestão de um código computacional. Eles querem saber o que estou pensando e sentindo.
Mas hoje eu vou ceder ao pedido do cérebro digital e compartilhar sobre o que estou lendo, ainda mais que as coisas que a gente lê têm, de certa forma, um pouco do nosso íntimo, da forma como pensamos sobre o mundo.
Vamos lá!
Vou partilhar a leitura entrecruzada de dois livros díspares: o primeiro é Pós-história – vinte instantâneos e um modo de usar, de Vilém Flusser, e o segundo é Recursos da esperança, de Raymond Williams.
Pós-história traz ensaios de Flusser sobre a era da existência humana na pós-escrita, em que viveremos mediados de tecnoimagens. Ler Flusser é como fazer mergulhos constantes em águas profundas. A gente tem de emergir para poder respirar, pois o texto é rápido, ligeiro e certeiro, o que nos deixa um pouco desnorteados. Flusser escreve do passado, do presente e do futuro de maneira bem articulada, convidando o leitor para a reflexão contínua. Flusser é um arauto para o novo. Os ensaios Nossa comunicação (p. 71-79) e Nossas imagens (p. 114-120) nos tiram do chão e convidam a repensar ideias sobre a cultura da técnica.
Já Raymond Williams constrói um estilo de navegação pelo mar inteiro, o que demanda tempo de preparação de repertório para organizar a viagem. Comecei a leitura de Williams com os livros Televisão e Cultura e Materialismo. Foram leituras acadêmicas por causa da pesquisa que venho desenvolvendo na pós-graduação, mas gosto mesmo é de fazer leituras prazerosas e resolvi me aprofundar na concepção filosófica do autor. Foi quando surgiu a ideia de ler Recursos da esperança. Olha, nestes tempos de tanta desesperança em que vivemos no Brasil, o livro é um estimulante para que aprendamos a lidar melhor com a realidade tão dura ao qual estamos passando nesta década de 2020.
A concepção de comunicação e cultura em Williams é muito vigorosa, o que torna a leitura muito atraente. O livro é constituído de ensaios, com uma entrevista no final da obra.
Ler em conjunto Vilém Flusser e Raymond Williams é um exercício emocional e intelectual desafiador, ainda mais pelas circunstâncias de os dois escreverem em estilos diferentes e abordarem sob óticas diferentes a realidade social, o que vale a pena como aprendizagem.
Notaram que comecei reclamando do direcionamento criado pelo algoritmo do Facebook, que fica de maneira intermitente a nos perguntar o que estamos pensando e acabei por ceder aos desejos (desejos?) do código e compartilhei um pouco da minha intimidade?
A lição retirada da experiência com o algoritmo sinaliza que é preciso ficar atento às indagações dos códigos e, ao mesmo tempo, aproveitar o que de melhor possa surgir de uma recomendação algorítmica: o importante é pensar e sentir sempre.
Enquanto isto, continuo a leitura das duas obras em uma leitura prazerosa.
Até a próxima!
Conheça+ sobre Williams e Flusser:
O homem está no mundo ao vivenciá-lo, avaliá-lo e conhecê-lo. Só pode conhecer o que vivencia e avalia. Ciência que não admite isto, que não admite suas dimensões estéticas e políticas, é ciência desumana. Somente depois de ter assumido tais responsabilidades, pode a ciência começar a elaborar teorias do conhecimento.
Vilém Flusser, em Pós-história – vinte instantâneos e um modo de usar, p. 70
É preciso repelir a ideia de que comunicação seja a função de uma minoria que comanda, instrui e dirige a maioria. É preciso finalmente recuperar a falsa ideologia da comunicação, tal como a recebemos: a ideologia de pessoas que estão interessadas em comunicações apenas para controlar o povo ou para ganhar dinheiro.
Raymond Williams, em Recursos da esperança, p. 44
Leia+:
- Flusser, Vilém. Pós-história – vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo, SP: editora Annablume, 2011.
- Williams, Raymond. Recursos da esperança. São Paulo, SP: editora Unesp, 2014.
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