
Ana Davenga, Dudu-Querença, Maria, Salinda, Luamanda, Cida, Zaíta, Di Lixão, Lumbiá, Kimbá, Ardoca, Naíta e Dorvi são alguns dos personagens que povoam o imaginário das histórias de Conceição Evaristo em Olhos D’água, uma espécie de tratado sociológico-literário do ser afrodescendente em sociedades assimétricas como a brasileira.
No livro a multiplicidade do feminino negro se esvai, brota e emerge em temas como aborto, estupro, fome, dor e desejo. Nas narrativas o corpo e a alma dos negros assumem lugares de fala ainda não explorados e se expressam em narrativas que atravessam exercício da sexualidade, seja de âmbito hétero ou homossexual, afinal de contas o corpo tem necessidade de se manifestar tanto quanto a alma.
E é esse corpo que transmite à alma os sofrimentos oriundos da maternidade que não pode ser vivenciada em plenitude, ou o trabalho desmedido atrás de uma renda para sobreviver em uma sociedade desigual. Do corpo também emerge a violência que insiste em jogar os pobres na corda bamba entre a vida e a morte em um jogo nervoso à mercê da miséria cotidiana. Esse mesmo corpo é levado para a prostituição até ficar de frente com a miséria desmedida.
Seu moço, é muita história!
O corpo carrega histórias e leva em si marcas da infância à velhice, em um estado de repetição, que parece nunca terminar. Mas é esse mesmo corpo que diz à alma, que é preciso não perder a esperança, subverter o medo e resistir ao tempo das intempéries.
Dentro desse mosaico de circunstâncias, Conceição Evaristo escreve para não morrer de fome, escreve para eternizar-se no registro e não perecer ante às adversidades.
Olhos D’água é uma narrativa construída sob múltiplas vozes e fluxos de pensamentos em interação, pois “A gente combinamos de não morrer!”, mesmo quando “A morte brinca com balas gatilhos de meninos.” (p. 99). Ao ler Evaristo o pensamento vagueia, mas não fica perdido, pois há muito o que se constituir neste mundo, e a literatura pode nos ajudar nesta empreitada.
Vou terminar esta resenha passeando pelo conto Ayoluwa, a alegria do nosso povo, que envereda sobre as dores do viver: “Com a ida de nossos mais velhos ficamos mais desamparados ainda. E o que dizer para os nossos jovens, a não ser as nossas tristezas?”, mas há busca de recursos internos e coletivos de construção da esperança: “A partir daquele momento, não houve quem não fosse fecundado pela esperança.” A esperança não nos é dada, ela é conquistada a cada intempérie da vida. A esperança é um estado dinâmico de cópula que subverte a dor e se transforma em prazer experimentado. E a resposta para os óbices da vida vem “quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando solução.”. Desta forma podemos nos aproximar do fim das histórias de Evaristo como se fosse um recomeço de existência, resistência e luta, para encher os olhos de vida.
Até a próxima!
Conceição Evaristo por ela mesma
Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam um debocha do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam as salivar sonho de comida. Olhos D’água, p. 16
Nuzinho. Bonito o Davenga vestido com a pele que Deus lhe deu. Uma pele negra, esticada, lisinha, brilhosa. Ana Davenga, p. 23
Habituou-se à morte como uma forma de vida. Dudu-Querença, p. 34
Uma coisa estava lá dentro da barriga dela e ia crescer, crescer até um dia arrebentar no mundo. Não, ela não queria, precisava se ver livre daquilo. Maria, p. 44
Não ia matá-la, não ia cometer suicídio. Mas ia disputar ferrenhamente os filhos. Beijo na face, p. 57
O amor é terra morta?
O amor é terremoto?
O amor não cabe em um corpo?
O amor é tempo de paciência?
O amor comporta variantes sentimentos?
Luamanda, p. 60-63
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