
Fiz um pacto comigo mesmo desde o final da adolescência: quando o sono vem, desligo a televisão e vou dormir independente do nível de interesse do programa que está passando na TV.
Mas fui desafiado a desistir do pacto, pois Caetano Veloso, em janeiro último, iria fazer um show nos 25 anos do Festival Verão, em Salvador, Bahia, no meio de uma turma descolada de um público cheio de agitação por novidades.
Chegou o dia do show e lá estou eu em frente à TV, conectado em um serviço de streaming, esperando a apresentação começar. O show demorou tanto que desliguei a TV e fui cumprir meu acordo de décadas. Confesso: tive um sono gostoso e acordei no outro dia com receio de não encontrar gravação daquela live disponível no canal da TV patrocinadora do evento.
Depois de alguns momentos de busca, finalmente achei a apresentação em homenagem ao disco Transa, que completou 50 anos de produzido no ano passado.
Você conhece Caetano? Se não conhece vai se deliciar com You don’t know me, música de abertura do show, que nos conduz ao silêncio, à quietude do que virá depois.
No show, em meio à agitação própria desses festivais midiáticos, as pessoas ao ouvirem Caetano param; param não, elas ficam atentas ao que está sendo cantado, pois as canções silenciosas nos convidam a ouvir e contemplar. As canções, ora as canções, fazem o pensamento dançar, e os ouvidos se educam, enquanto o corpo transmuta Irene, uma homenagem à irmã mais velha do cantor, ou Maria Bethânia, uma ode à irmã mais nova.
Daí em diante Caetano passeia por, Asa Branca, London London e The empty boat, criando uma tensão que leva o espectador a cada vez mais mergulhar nas mensagens que o compositor baiano exala pela voz, pelos gestos e pelo suor que se espalha pelo corpo.
Segue Caetano na jornada transcendental, parecida com a ideia de cinema advinda do imaginário do cantor. O cenário expõe uma mistura de vermelho e preto, adequada à forma sussurrante do filho de dona Canô. No meio da paisagem rubro-negra, Caetano realça a cena por meio de uma indumentária marcada por uma calça escura e uma camisa avermelhada. O visual e o sonoro se encontram para a elaboração de uma espécie de exercício para os ouvidos, em que o santo-amarense conta as vivências no exílio durante o período da ditadura no Brasil.
É daquele sussurrar que surgem Araçá Azul, Triste Bahia, Neolithic Man, It’s long way. Estamos no meio do mar, e as forças da natureza não estão revoltas. Revolta é a forma de cantar do músico santo-amarense.
Aí Caetano revisita You don’t know me, agora acompanhado de Jards Macalé, Tutty Moreno e Áureo de Sousa, os menestréis que estiveram com ele no princípio de tudo. Logo após, Jards Macalé por meio de Mal Secreto assume as rédeas da navegação e provoca Caetano com Sem samba não dá. Caetano retoma os rumos da jornada com Mora na Filosofia e Nostalgia, apontando que já estava na hora de terminar a caminhada musical. Meu coração entristeceu. Eles não tocarão Nine out of ten? Mas não é que Caetano e banda abrem alas para a música que hoje é passado, presente e futuro da cultura brasileira?
Até a próxima!
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Sobre o evento
Que aconteceu? Show Transa
Onde aconteceu? Festival de Verão, Salvador, Bahia
Quem transmitiu? Globoplay
Quem participou? Caetano Veloso, Lucas Nunes, Alberto Continentino, Rodrigo Tavares, Pretinho da Serrinha, Thiaguinho da Serrinha, Tainã do Gege, Jards Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Sousa e Moacir Albuquerque
Quanto tempo? 1:17 min
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