
Revisitando as origens do Axé Music
O mito do herói perpassa diversos âmbitos de nossa cultura e já é costume eleger alguma personalidade como principal protagonista de eventos históricos no Brasil. E isto não seria diferente com o movimento Axé Music muitas vezes é apresentado exaltando-se a figura de algum herói, ou pai ou mãe ou rei ou e rainha...
Mas revisitando o Axé é possível trazer elementos históricos relevantes que levaram ao surgimento desse movimento cultural tão relevante, criado no final do século XX, em que fica evidenciada a força do coletivo na elaboração desse construto cultural.
Vamos lá?
Duas dimensões foram fundamentais para a criação coletiva desse movimento cultural afro-baiano: a primeira foi a música de base percussiva com forte influência do candomblé da Bahia, o Ijexá, vertente de música elaborada pelos blocos de afoxé tem origem afro-brasileira e foi muito cantado e divulgado pelos Filhos de Gandhy, entidade carnavalesca criada em 1949. Por sinal, amanhã, 18 de fevereiro, o Gandhy completará 76 anos de existência.
O instrumento musical que impulsiona o afoxé é o agogô com aquela sonoridade metalizada que libera sons agudos, regendo os tons graves dos demais instrumentos percussivos, fazendo as pessoas dançarem de forma lenta e sincronizada, em uma caminhada em estado de meditação.
Na saída do Gandhy sempre há um ritual de religião afrocentrada que funciona como um pedido à transcendência para que haja paz nos dias de carnaval.
O Gandhy é uma uma agremiação popular, nascida no seio da labuta dos trabalhadores do porto de Salvador. É o som do Gandhy que vai influenciar a batida afro de Gilberto Gil, inicialmente, e direcionar boa parte das composições de Moraes Moreira quando este se relacionava com o carnaval da Bahia.
A segunda dimensão constitutiva do movimento Axé foi a influência das tecnologias, inicialmente eletrônicas, depois, computacionais, que iriam dar origem ao que nós conhecemos hoje como trio elétrico (1950) e à criação de um instrumento musical genuinamente brasileiro: a guitarra baiana. Dodô, o eletrotécnico, e Osmar, o metalúrgico, montaram um palco em um automóvel e até hoje o trio elétrico circula mundo afora divulgando a cultura da Bahia.
Foi a junção da pegada eletrizante de Dodô e Osmar com a pegada dos ritmos afro-baianos que serviu de sustentáculo para o que denominamos de Axé Music. É bom lembrar que Moraes Moreira foi o primeiro cantor de trio elétrico, ou seja, o primeiro cantor a ter a ideia de pôr voz nas engrenagens do trio elétrico. E Moraes Moreira não estava sozinho, pois com ele havia as companhias da turma de Armandinho, Dodô e Osmar e dos Novos Baianos. Estes contribuíram ainda com as vozes de Baby do Brasil, a primeira voz feminina a ser ouvida em um trio, e as sofisticadas participações de Paulinho Boca de Cantor e Pepeu Gomes.
Além do Trio de Dodô e Osmar, que depois passou a ser Armandinho Dodô e Osmar, havia os trios Marajós, Tapajós, Novos Bárbaros dentre outros, que deram impulso e renovaram a forma de fazer música na Bahia, indo além de música para ser tocada somente no carnaval.
Houve algumas construções sui generis de trios elétricos como o Caetanave, em homenagem a Caetano Veloso, e o Saborosa, pertencente a uma fábrica de bebidas alcoólicas. Houve trio elétrico em forma de crocodilo e em forma de embarcação marítima. Houve trio com piano junto com guitarra baiana e houve trio que soltava perfume para os foliões. Foi a partir desses iniciadores inventivos que surgiram trios elétricos cada vez mais sofisticados, alguns destes pertencentes a celebridades do Axé Music como Durval Lelys, Chiclete com Banana, Ivete Sangalo e por aí vai…
Tive a oportunidade de dançar atrás do trio elétrico de Luiz Gonzaga, um momento ímpar em minha vida de folião e de assistir aos primeiros shows dos Novos Baianos em plena praça Castro Alves, em Salvador.
Os novos trios surgidos a partir da década de 1980 vão aos poucos trocando as antigas cornetas por caixas de som equipadas com alto-falantes de alta fidelidade.
É bom lembrar que os custos de construção de trios elétricos são muito altos, fator este que impediu que os blocos afros e afoxés tivessem acesso a essas tecnologias logo no início. As agremiações de origens africanas tinham de alugar trios elétricos, muitas vezes com estrutura tecnológica antiga, o que as prejudicaram nos desfiles durante muitos anos, pois na hora dos desfiles as referidas agremiações eram ofuscadas pelas luzes e pelas potências dos trios elétricos pertencentes ao empresariado detentor do capital. Um bloco como o Ilê Aiyê só foi ter acesso a um trio elétrico próprio mais de 30 anos depois de ter sido criado.
Observe o leitor que nós estamos tratando de cultura, e cultura não é só festa. Cultura é trabalho, cultura é tecnologia, cultura é arte, cultura é relação social. E o trio elétrico, ao mesmo tempo que servia como instrumento de fomentação da alegria, era também usado como instrumento de produção de desigualdades. O leitor pode ter uma noção do relacionamento entre os blocos de trio e os blocos de percussão (samba, afro e afoxé) ouvindo a música Macuxi muita onda (Eu sou negão) do Cantor Gerônimo Santana (1987), que narra um pouco a questão aqui relatada.
Continuando, em 1982 o Chiclete com Banana lançou o disco Traz os Montes, pois naquela época as bandas de música já se juntavam aos donos dos blocos de carnaval, em uma parceria econômica que dura até hoje, e lançavam discos de alcance regional. Houve um disco com uma música que teve muita repercussão nos dias de momo em Salvador, o álbum Brilhaê, do cantor e compositor Lui Muritiba, que tinha uma música com o mesmo nome do título do álbum.
Gente, tive o prazer de desfilar no Brilhaê em 1982 e foram momentos inesquecíveis de música e dança. No trio havia um jogo de luzes cujos raios eram jogados sobre os foliões que usavam um macacão branco. Pela primeira vez vi efeitos especiais a céu aberto, que maravilha. Lui Muritiba tinha influência do forró, frevo, reggae e da marchinha, o que deixava a galera em delírio carnavalesco.
Um outro fator significativo para a ascensão do Axé Music foi a criação de blocos afros nos meados dos anos 1970. O Ilê Aiyê, influenciado pelos afoxés, blocos de índios (indígenas) e blocos de percussão, ressignificou as batidas dos tambores e instaurou uma linguagem própria nos ritmos do carnaval baiano. O Olodum retraduziu as batidas do Ilê Aiyê, incorporando o reggae na música baiana, juntamente com o bloco afro Muzenza, que vinha do bairro da Liberdade para o centro de Salvador, espalhando uma mistura de protesto e alegria durante a festa momesca. Já o Malê de Balê construiu africanidades por meio da dança, e o Badauê elevou a tradição dos afoxés sintonizado com as batidas dos blocos afros.
É no Olodum que vai ser criado um ritmo genuinamente baiano, o samba-reggae, sob a batuta do mestre Antonio Luiz Alves de Souza, mais conhecido como Neguinho do Samba. O samba-reggae impactou artistas como Paul Simon e Michael Jackson que vieram ao Brasil para fazer intercâmbio musical com a comunidade criativa do Pelourinho. Foi muito bonito ver Michael Jackson em movimentos sincopados deslizar nas ruas do Pelourinho sob o ritmo do samba-reggae, assim como foi maravilhoso ouvir em um disco de Paul Simon as experimentações que ele fizera ao dialogar com a música produzida por Neguinho do Samba.
É nessa caminhada em movimentos paralelos de inovações tecnológicas e misturas de instrumentos musicais percussivos com eletrônicos que começam a surgir músicos que ressignificavam todas aquelas influências, dando novos rumos à música produzida na Bahia.
E foi a WR, de Wesley Rangel, que deu suporte para gravações das músicas dos artistas locais de Salvador, em uma naquela época em que os cantores tinham de se dirigir ao eixo Rio-São Paulo para gravar e fazer marketing da produção artística baiana. A partir de então formou-se uma comunidade de músicos que se relacionavam com o público brasileiro sem precisar ir morar no Rio de Janeiro ou São Paulo.
Chegamos a meados de 1985, quando a população brasileira percebe que há um movimento cultural relevante oriundo da Bahia, com identidade própria e produtora de vários ritmos. O ano de 1985 representa um marco na música brasileira, mas é bom lembrar que 1985 é a ponta de um iceberg cujas profundezas ainda há muito o que pesquisar e contar.
E quem deu apoio para aquele povo que surgia naquela época?
Os Novos Baianos se tornaram mais baianos a partir do momento que subiram em trios elétricos e se fundiram com os músicos que aqui moravam, de um lado. Do outro lado, Os Doces Bárbaros (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa) participaram, dando muito apoio ao movimento, ao gravar músicas dos novos compositores, desfilar nos dias de carnaval em blocos afros e afoxés ou ao levar os novos músicos com eles nas excursões músicas que eles faziam Brasil afora. Foi uma ajuda silenciosa, muitas vezes, aqui e ali, mas que contribuiu muito para a continuidade do movimento.
De movimento cultural reconhecido no Brasil, o Axé Music percorreu o mundo e recebeu visitas de personalidades ilustres como Michael Jackson, David Byrne, Paul Simon, Jimmy Cliff, Judith Butler dentre outros.
É muita coisa para contar, ah, cansei…
Pois é, leitor, seria injusto nomear reis e rainhas quando muitas mentes criativas deram vida a esse movimento que em 2025 completa 40 anos.
Aguardem as próximas publicações e até a próxima!
Licença Creative Commons
Leia+
Preferidos do EPraxe
Descubra mais sobre Canal EPraxe
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
