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Artigos, resenhas e crônicas do cotidiano

Pneus furados, brigas, espancamentos, bombas, discussões, polêmicas, cancelamentos, depredações, linchamentos, racismos, discursos de ódio, roubos, arrombamentos, atropelamentos, perseguições, assédios, homofobias, desacatos: tudo isto forma o novo cenário das partidas de futebol, transformando esses eventos em momentos de barbárie.
Tempos atrás ir a partidas de futebol era um momento para descontrair e se divertir: uma vivência do maravilhoso, de algo genuíno da cultura brasileira, o futebol era uma oportunidade para conhecer outras pessoas e relaxar.
A gente convivia com pessoas de outros times, ficava triste quando nosso time perdia e sabia lidar com as situações em que o time preferido não conseguia vencer.
Ainda hoje tenho amigos de times diferentes do meu. Quando estou com eles, entro em conversação filosófica sobre a cultura do futebol, mas essa rotina tem sido cada vez mais escassa.
A vida foi mudando e fui vendo nos estádios pessoas cada vez mais estressadas, mesmo quando o time ganhava. Do objetivo de participar da cultura do futebol para se divertir, as pessoas passaram a criar a cultura dos desencontros e desavenças. Dias desses fui convidado para ir assistir a uma partida de futebol de meu time querido, mas desconversei e fugi da situação por meio de uma recusa polida. Sinto medo até dos torcedores do meu próprio time e evito passar nos dias de jogos nos locais em que há fluxos de torcedores. Acho tudo isto muito triste. Vestir camisa do time ou usar boné com o símbolo do time? Não é mais possível. Não consigo suportar esse lado sombrio do futebol, que se direciona para a destruição do que há de belo no humano: a capacidade de se divertir. Participar de eventos futebolísticos perdeu o sentido, pois a vida clama por paz.
Os tempos mudaram. A era hoje é a da contradição: ir a eventos de diversão para divergir; ir a eventos de violência para se divertir. Que vida louca é esta?
Até a próxima!
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Inacreditável imaginar um mundo sem GPS (Global Position System [Sistema de Posicionamento Global]), uma invenção tão útil para a vida cotidiana. Mas houve um tempo, não muito distante, em que as pessoas se moviam mundo afora sem precisar desse sistema.
Ainda no segundo ano do ensino médio, vivi a experiência de usar mapas sob diversas formas nas aulas de Geografia. A professora era uma entusiasta das ciências e mobilizou a turma para aprender a disciplina na prática. Durante aquele ano tive oportunidade de estudar teorias sobre o espaço e ao mesmo tempo praticar movimentos e localizações por meio de análise de mapas para identificar limites entre regiões, distâncias entre cidades, questões climáticas de países, tipos de culturas de estados brasileiros: a Geografia passou a ter novos significados na minha vida.
Foi a partir daquelas abordagens que fui aprendendo a como me localizar nos mapas e simular movimentos de uma localidade a outra. Naquelas práticas os estudantes conheciam o mundo e percebiam o que havia além do horizonte.
Ali estávamos aprendendo a lógica que hoje é outorgada aos sistemas GPS, pois os cálculos e as medições eram feitos pelos próprios aprendizes com a orientação e acompanhamento da educadora.
Na idade adulta, quando eu queria viajar, comprava mapas e guias de viagens e, com base naquelas fontes, conhecia muitas regiões brasileiras, mesmo sem a existência do GPS. Hoje deixei o hábito de consultar mapas e guias de viagem e me oriento por meio de códigos digitais, esquecendo de toda aquela aprendizagem que algum dia desenvolvi na vida.
Os sistemas GPS são tão sofisticados que me informam onde estou, a distância que falta para o destino a que me dirijo e até os pontos em que haverá dispositivos de multa. Acha pouco, há informações sobre as condições da estrada e a situação do fluxo de veículos que transitam nos próximos caminhos que iremos percorrer. O sistema ainda avisa se a pessoa está ultrapassando a velocidade permitida na via de transporte.
Notem como nossa forma de pensar fica cada vez mais dependente de objetos técnicos, pois quanto menos acionamos nosso raciocínio e memória mais dependentes tendemos a ficar de objetos técnicos. Todavia os leitores poderão argumentar que a humanidade poderia desenvolver outras formas cognitivas para interagir com o mundo já que não precisa mais se preocupar com essas questões de movimento e localização. Mas é preciso lembrar, que daqui em diante, algumas formas de raciocínio em nós humanos tenderão a diminuir e ainda não sabemos quais consequências essas situações sociotécnicas trarão para o dia a dia.
Como ficará nossa memória de agora em diante? Abandonaremos o cálculo mental? Deixaremos de usar os gestos precisos de manipular objetos como caneta e pincel para ressignificar o mundo?
Sempre que tenho oportunidade, volto a fazer os velhos cálculos mentais, mesmo sabendo que uma máquina de calcular faz melhor do que eu. Em viagens, na medida do possível, desligo o GPS e vou organizando a viagem utilizando meus olhos, meus ouvidos e meu pensamento. Afinal de contas ainda gosto de viver e existir com ou sem tecnologia.
Até a próxima!
Aviso aos leitores
A partir desta semana só teremos publicação no EPraxe nas segundas-feiras. Por enquanto, deixaremos de postar nas sextas-feiras. Quando houver necessidade, faremos postagens extraordinárias sobre algum assunto que se torne urgente compartilhar.
E vamos que vamos!Trabalho licenciado com Creative Commons![]()

Foi em uma tarde de um sábado em 2002 que vi na banca de revista o encarte Elza Soares – do cóccix ao pescoço. Ora, ora são 20 anos!
No encarte havia um material ilustrado com fotos de pessoas negras e entre elas estava Elza, imponente de óculos escuros, cabelo Black Power, um primor de encarte. O outro material do encarte era um CD.
Ao chegar em casa, passei uma jornada de audição daquele disco, um movimento de aprendizagem musical e política que me atravessava sinalizando que o novo havia chegado ao terceiro milênio.
O primeiro impacto foi com a música Dura na queda, de Chico Buarque, um abre alas do que estava por vir:
“Borboleta bomboleia
é dura na queda
custa a cair em si
largou família
bebeu veneno
e vai morrer de ri”.
Logo a seguir surge Dia de festa, a la Jorge Ben Jor, celebrando Iemanjá. Nesse meio tempo aparecem Gil e Caetano, mostrando que os negros daqui e os de lá se parecem com os do Haiti.
Ah, coração! Dor de cotovelo, de Caetano Veloso, é letra que compõe a outra face do amor, a sombra inexplicável do ciúme, que dói no corpo e na alma. E aquele chorinho namorando o samba, o Bambino, de Ernesto Nazareh e José Miguel Wisnik?
Êpa, mudança de ritmo e de tom, Elza clama pelas vozes de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Capellette para denunciar que A carne mais barata do mercado é a carne negra. E o que resta? É Arnaldo Antunes anunciando: “Eu vou ficar aqui“, uma composição melódica híbrida que nos faz lembrar da diversidade de ritmos que a música brasileira comporta. De Arnaldo Antunes, Elza se volta para Carlinhos Brown e se inova ainda mais com Entocopop; é som, é letra, é tudo ao mesmo tempo, agora.
O romance invade o disco e cria giros entorpecentes com Fadas, de Luiz Melodia: ah, que poesia! José Wisnik volta para a roda e traz consigo a parceria de Oswald de Andrade em Flores horizontais. Aqui é poesia de outro nível.
Elza tem voz e composição próprias e dá as mãos a Letícia Sabatella em A cigarra. É para se encantar com os cantos das cigarras encantadoras.
Já em Quebra lá que quebro cá, Elza mistura tudo como uma negra lúcida que é, em uma canção regada a voz e pandeiro. É muita criatividade, moço. A cantora-cigarra segue em passos melódicos ainda mais contagiantes:
“hoje meu coração só pede paz
pra tentar te esquecer eu vou cantar”
O disco segue abrindo caminhos: Bruno Aguiar vem nos lembrar como a tristeza vem muito das desigualdades que produzimos em nossa humanidade desfigurada. Ora, isto é Todo dia.
Por fim, Façamos (Cole Porter, versão de Carlos Rennó), um final que não termina. Voltemos para a primeira faixa do disco.
Aviso aos navegantes: quem baixar as músicas em plataformas de mídia não terá o privilégio de ler a apresentação do CD feita por José Miguel Wisnik, uma peça rara de comentários. São os limites das novas tecnologias.
Até a próxima!
Em Quebra lá que eu quebro cá, Elza faz combinações de cancioneiro popular brasileiro:
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