De dentro de casa sou observado por uma multidão de internautas. Muitos deles eu nem conheço e, provavelmente, jamais vou conhecer. Meus rastros vão ficando pelos caminhos dos territórios digitais. Basta alguém procurar pelo meu nome na Rede, e um número incontável de dados ficarão disponíveis sobre quem eu sou, o que faço, minhas preferências, minhas controvérsias. Sou um livro aberto com capa escancarada. Vez por outra recebo e-mails de usuários maliciosos que possuem meu nome completo e CPF. Alguns usuários, depois de se apropriarem dos meus dados, fazem ligação me procuram oferecendo empréstimos em conta, cartões de crédito e outras coisas mais. Existem sites especializados em capturar informações do currículo da plataforma Lattes, para expor nosso histórico escolar e vida profissional. Às vezes sou apanhado de surpresa com a oferta de um produto que procurava há algum tempo. Como eles sabem de tantas coisas? Os cookies, que não são nenhuma massa de bolo, capturam cada endereço que visito. Eles registram gostos, desejos e desafetos de cada pessoa na Internet. Assino termos de serviços de internet quase diariamente. Ah, aquelas letras miúdas me cansam. Preciso conseguir logo as informações! Antigamente eu preenchia formulários sobre meus dados demográficos; hoje, enquanto registro meus dados demográficos em um formulário eletrônico, um algoritmo captura meus dados pós-demográficos: todos os meus comportamentos dentro do mundo digital. Os filmes de ficção científica não me atraem mais como antes. Eles já não conseguem prever nada! Ninguém acredita mais em ficção e fantasia, agora, a realidade é que é científica e não precisamos mais de filmes ou quadrinhos. Eu já não preciso contar minha própria história, quando algum artefato pode fazer isto para mim, e sem esquecer de nada.
Agora sou um homem de rastros que vão se formando a cada segundo de existência na Internet. Assim vou vivendo, espreitado, perscrutado, no meio de múltiplos espelhos a me dizer quem eu sou, o que faço e o que desejo e para onde vou.
A história que vou contar para vocês era passada de pais para filhos, de vizinho para vizinho na Salvador dos anos 1950 a 1970. É sobre a controvérsia entre o estado da Bahia contra a mãe de santo, dona Netinha.
Naquele tempo, havia um tipo de estrutura de controle da população negra e pobre que se denominava “Jogos e Costumes”.
O pessoal da Jogos e Costumes era responsável por coibir a circulação da comunidade pobre e negra na cidade, além de aplicar penalidades, independente de autorização judicial, sobre os cidadãos que o agente do Estado considerasse delinquente.
Foi então que apareceu um delegado chamado Peçanha, que fora indicado por alguns deputados para fazer um trabalho de limpeza na cidade. Quem fosse apanhado em manifestações de candomblé seria preso e poderia apanhar muito quando chegasse à delegacia.
Os filhos de santo preocupados com a situação avisaram à mãe Netinha da decisão do governo e da existência de Peçanha. Todos estavam atônitos e com medo de realizar os preceitos afro-brasileiros, mas os adeptos do candomblé tinham fé nos orixás e acreditavam em mãe Netinha.
Uma celebração foi organizada, e o povo ficou sabendo dia e hora do acontecimento. Peçanha ficou irritado com aquela desobediência e designou o sargento Melquíades para comandar um grupo de dez homens para quebrar todo o terreiro durante a festa e levar todo mundo preso.
No dia da celebração Melquíades pegou os melhores policiais e partiu para empreitada. Chegando lá, o grupo se dividiu e foi procurar o tal terreiro. As radiopatrulhas percorreram todo o bairro e não conseguiam identificar onde era o lugar da celebração. Quanto mais tempo demorava de encontrar o terreiro mais o sargento se enchia de raiva.
Próximo da meia-noite, a festa estava reluzente, e povo de santo estava em profunda meditação. Foi quando Ananias chegou ao terreiro. Ele era ogã da casa e um filho querido de mãe Netinha. Ananias tinha visto as radiopatrulhas e estava muito ansioso.
Mãe Netinha ouviu o filho querido e avisou que os policiais só encontrariam o terreiro depois da meia-noite e meia, pois antes os adeptos iriam concluir alguns rituais.
Os policiais já estavam zonzos, cansados de tanto procurar a casa de candomblé. Por volta de uma e meia da manhã, Mãe Netinha anunciou ao grupo que os convidados estavam chegando. Melquíades percebeu que os carros passaram várias vezes pelo terreiro, mas só ouviam um som distante. Agora o som dos tambores eram bem alto. O terreiro sempre esteve ali na cara deles!
O sargento sacou a arma para dar um tiro de advertência quando estivesse dentro do terreiro. Orientou a todos os soldados que usassem o cassetete para bater em todos indistintamente, depois fariam perguntas.
Os policiais avançaram contra a casa, alguém deu um pontapé na porta e houve um silêncio geral. Melquíades, do lado de cima da escada, apontou o revólver para cima e tentou dá um tiro. O revólver travou, e o sargento iniciou um trabalho de transe. Se dirigiu à mãe de santo, beijou-lhe as mãos e começou a dançar. Da mesma forma os policiais começaram a dançar. Alguns deles usavam o cassetete como instrumentos de maculelê. Mãe Netinha olhava para os convidados tranquila e serena. O povo não riu da situação. Todos assistiam abismados.
Aos poucos os transes começaram a cessar, e os policiais foram voltando a si. Ninguém nunca tinha visto uma cena daquela: aqueles homens saindo da casa como se fosse um time de futebol em uma partida perdida.
Dias depois, o sargento foi transferido para uma cidade interiorana, onde ninguém o conhecia. O delegado Peçanha foi promovido, pois quem ocupa cargo de importância nesta terra, nunca sai perdendo dinheiro nos momentos de controvérsias.
Muita gente diz que Melquíades voltou ao terreiro, quando se aposentou, e se tornou ogã da casa de santo do acontecimento mais emblemático que se tem notícia na velha Bahia. Mas este fato a gente não pôde verificar.
Assim aquelas histórias foram formando o meu repertório de vida. Repertório de coisas inexplicáveis do limiar entre o real e o imaginário.
Quase 9 meses em casa por conta da pandemia não é fácil. Mas a situação fica mais amena quando se tem acesso a uma leitura prazerosa. Aproveitei o máximo do tempo da pandemia em leituras mil. Abaixo alguns dos livros curtidos no período de março a novembro de 2020.
Jamais fomos modernos: Ensaio de antropologia simétrica, de Bruno Latour: uma discussão muito boa sobre questões da antropologia diante da concepção do que seja “Moderno”.
Informação. Linguagem. Comunicação, de Décio Pignatari: traz questões essenciais sobre comunicação em linguagem direta e acessível.
Pode o Subalterno Falar?, de Gayatri Chakravorty Spivak: uma discussão empolgante sobre o lugar de fala.
A Crônica, de Jorge de Sá: um ensaio leve e gostoso a respeito de um gênero literário que apaixona todo tipo de leitor.
No enxame: Perspectivas do digital, de Byung-Chul Han: uma consistente discussão a respeito das mediações sociais em um mundo submerso em zeros e uns.
A Verdade e as Formas Jurídicas, de Michel Foucault: depois de ler A ordem do discurso anos atrás, fiquei me devendo uma segunda leitura de Foucault. Foi quando me deparei com A verdade e as formas jurídicas: um texto irreverente e atual que explicita para nós o pensamento de Foucault, um filósofo que ainda muito influencia os estúdios das ciências sociais brasileiras.
A ordem do discurso, de Michel Foucault: após ler A verdade e as formas jurídicas, voltei para A ordem do discurso para entender melhor o pensamento de Foucault quanto às articulações entre discurso e poder.
Antropologia do Ciborgue: As vertigens do pós-humano, organização de Tomaz Tadeu: o texto central deste livro é o de Donna Haraway. Nele a autora defende ideias impactantes sobre a questão Ciborgue na vida das pessoas.
A questão da técnica, de Martin Heidegger: este livro foi uma releitura. Ao ler O mundo codificado, de Flusser, tive de voltar a Heidegger para compreender melhor a questão da técnica na perspetiva. Olha como a gente acaba interligando os textos?
Trechos de algumas das obras
Nosso tempo é um tempo de ultrapassar barreiras, apagar antigas categorias – e sondar o mundo à nossa volta. Quando dois elementos aparentemente díspares são combinados de forma imaginativa, justapostos de maneiras novas e singulares, é comum surgirem descobertas espantosas. Marshal McLuhan, em O meio é a massagem, p. 10.
Consideremos agora as margens (pode-se meramente dizer o centro silencioso e silenciado) do circuito marcado por essa violência epistêmica, homens e mulheres entre os camponeses iletrados, os tribais, os estratos mais baixos do subproletariado urbano. Gayatri Chakravorty Spivak, em Pode um subalterno falar?, p. 69.
O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se lutar, o poder do qual queremos nos apoderar. Michel Foucault, em A ordem do discurso, p. 10.
Para despertar o desejo de leitura, veja abaixo trechos de alguns dos livros aqui descritos. E haja leitura!