Os cérebros eletrônicos sabem tudo?

Os cérebros eletrônicos sabem tudo?
Os cérebros eletrônicos sabem tudo?

Quando eu era criança adorava assistir a filmes de ficção científica com robôs falando com seres humanos. Geralmente os robôs sabiam de tudo e eram bastante amigáveis. Cresci na esperança de ver aquelas máquinas participando da vida cotidiana, dentro das casas, nos shoppings, nos parques e supermercados.

Depois fui percebendo que aquelas figuras em formas humanas e constituídas de lata, não existiriam como eu imaginara. Certo mesmo era Gilberto Gil, que no final da década de 1970, já utilizava o termo Cérebro Eletrônico. 

Hoje a gente está rodeado de scripts, macros, protocolos e robôs lógicos, que organizam e comandam o fluxo de informações no mundo. A gente não vê um robô com cabeça tronco e membros, mas ele está ali bem perto de nós, sussurrando em nossos ouvidos.

Quando acordo e vou visitar uma mídia social, um robô pergunta o que eu estou pensando. E lá vai eu postar textos, fotos e vídeos, para que ele rastreie e prediga quais são minhas vontades, desejos e ações. Quando desejo saber de algo, consulto o buscador que me deixará informado em segundos. Na hora de assistir a um filme ou série, um robô me pergunta se gostei ou não gostei da história e assim ele vai tentando adivinhar os meus gostos e direcionando sobre quais tipos de narrativa deverei apreciar.

Até bem pouco tempo achava que não era possível identificar e tornar computável as emoções do cidadão, mas as plataformas de mídia social digital conseguem matematizar aquilo que sentimos. Desta forma nossas emoções podem ser traduzidas por pequenas imagens amarelas para indicar sinalizadores como: feliz, abençoado, amado, triste, adorável, agradecido, animado, apaixonado, louco, grato, muito feliz, fantástico, bobo, festivo, maravilhoso, legal, divertido, relaxado, positivo, tranquilo, esperançoso, alegre, cansado, motivado, orgulhoso, sozinho, pensativo, OK, nostálgico, com raiva, doente, encantado, esgotado, sentimental, confiante, sensacional, novo, determinado, exausto, incomodado, contente, sortudo, de coração partido, entediado, sonolento, energizado, com fome, profissional, angustiado, em paz, decepcionado, otimista, com frio, fofo, fabuloso, ótimo, pesaroso, super, preocupado, engraçado, mal, para baixo, inspirado, satisfeito, entusiasmado, calmo, confuso, pateta, ausente, bem, sarcástico, solitário, forte, preocupado, especial, deprimido, alegre, curioso, por  baixo, bem-vindo, quebrado, lindo, incrível, irritado, estressado, incompleto, hiperativo, maldoso, maravilhado, irado, de saco cheio, intrigado, furioso, revirorado, realizado, surpreso, perplexo, frustrado, indiferente, bonito, melhor, culpado, protegido, livre, perdido, velho, preguiçoso, pior, horrível, confortável, estúpido, envergonhado, terrível, adormecido, vivo, tímido, grosso, esquisito, humano, magoado, muito mal. São 123 imagens para mapear os sentimentos de uma pessoa. Alguns sentimentos são representados por mais de uma imagem. Aqui vem uma pergunta: o que pode fazer um algoritmo com a expressão de sentimentos de uma pessoa, quando estas expressões podem ser matematizadas? 

É para pensar, caro leitor.

Além do mapeamento on-line dos sentimentos das pessoas, uma plataforma digital também pode rastrear as atividades que o cidadão faz: comemorando…, assistindo…, comendo…, bebendo…, participando de…, viajando para…, ouvindo…, procurando…, pensando sobre…, lendo…, jogando…., apoiando…. 

O interessante é que os sentimentos e as atividades das pessoas são capturados, mediante, de certa forma, o consentimento do cidadão. Aqui vem a necessidade de as pessoas conhecerem a própria situação de privacidade e estarem conscientes do nível de invasão de privacidade que as plataformas digitais exercem sobre a sociedade.

Imagine o poder de atuação da publicidade automática, quando o big data da plataforma digital tem registrado o dado “com fome”? Ou a atividade “viajando para…”? São situações que demandam reflexões, mesmo para as pessoas que não se preocupam com a própria proteção de dados e sentem necessidade de se expor.

Voltando aos robôs dos antigos filmes de ficção, tão humanizados e respondendo a tudo que era perguntado, percebo que ainda está longe a situação de esses objetos técnicos estarem conosco nos dias atuais, mas noto o crescimento dos cérebros eletrônicos a nos rastrear e predizer quais serão minhas atitudes e sentimentos futuros. Isto será bom? Será ruim? Não há respostas rápidas e certeiras sobre esse acontecimento, mas precisamos aprender a lidar com essas novas formas de ser e existir humanamente com esses objetos técnicos.

Até a próxima!



Pensar faz bem com Mário Quintana

Pensar faz bem com Mário Quintana
Pensar faz bem com Mário Quintana


Por novas manhãs de setembro

Manhãs de setembro
Manhãs de setembro

Pela extensão da história, Manhãs de setembro daria um bom longa metragem, ainda mais que o cinema brasileiro não tem por tradição construir histórias longas. Já seria um começo. Mas os produtores decidiram por compor uma minissérie, de cinco capítulos, com duração de menos de 40 minutos cada.

O resultado da minissérie é a construção de uma narrativa pela via dos comuns para retratar a história de uma mulher trans, que busca autonomia na vida. Mas quando a tal da autonomia está próxima, um fato inusitado acontece. O argumento é interessante.

Manhãs de setembro traça a jornada de Cassandra, que ao conseguir finalmente ir morar em um apartamento próprio, descobre que tem um filho, fruto de uma relação com uma outra mulher tempos atrás. Aqui começam os dilemas de Cassandra. Como uma pessoa que deseja independência, um filho, na visão da personagem, criaria problemas para realização da tão sonhada autonomia.

Manhã de setembro bem se aproxima da linha construtiva poética de Carlos Drummond de Andrade, pois há um entrelaçamento de histórias, que se combinam e se digladiam construindo uma história maior. Na narrativa há um homem casado que se apaixona por uma mulher trans, mas não consegue viver plenamente o relacionamento, esse homem tem uma filha que está descobrindo outras formas de viver a sexualidade. A mulher trans, Cassandra, teve um relacionamento hétero, ao qual não gosta de lembrar; a ex-mulher da mulher trans sobrevive em estado cotidiano de insegurança social; o filho da mulher trans deseja ter um pai, somente um pai, o filho da mulher trans tem uma amiga esperta que traz na sombra uma história para contar, a mãe da amiga do menino possui segredos sublimados, que o leitor só poderá saber quando assistir à minissérie. A mulher trans tem um amigo que é casado com outro amigo.

A trilha sonora de Manhãs de setembro é muito gostosa de ouvir. O resgate histórico das músicas interpretadas por Vanusa, em que Liniker registra voz, é muito pertinente e se combina com o tipo de narrativa construída.

E assim a história vai se construindo como se fosse um redemoinho, convidando o espectador a entrar na roda e vivenciar e reconhecer outras formas de se viver aqui na terra.

Um ponto de destaque da história é que os criadores não se deixaram levar pelos estereótipos batidos das contações de história sobre a comunidade LGBTQI+ e resgatam os personagem sob múltiplas facetas de representação social, como um gay que adora futebol e uma mulher trans que é motogirl. Ponto para os organizadores.

Até a próxima!

Por fim, é preciso lembrar da atuação da atriz Liniker, que se liberta da representação social de ser só cantora e avança em outros terrenos, demonstrando que aqui na Terra estamos todos para ser Mais, muito Mais, Demais.



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O que é? Manhãs de setembro {minissérie}
Quem dirigiu? Luis Pinheiro e Dainara Toffoli
Quanto durou? 171 min
Quem são os atores?
  • Cassandra – Liniker
  • Ivaldo – Thomás Aquino
  • Leide – Karine Teles
  • Gersinho – Gustavo Coelho
  • Grazy – Isabela Ordeñes
  • Décio – Paulo Miklos
  • Aristides – Gero Camilo
  • Zaki – Breno Ferreira
  • Irene – Clébia Sousa
Onde assisto? Plataforma Amazon Prime

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Poesia da existência e das sensações por que passamos noite a dentro.

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A bola de cristal, a cartomante e a aprendizagem do amanhã

Aprendizagem do amanhã
Aprendizagem do amanhã

Sem uma bola de cristal ou uma cartomante para dizer quem eu sou e o que será do amanhã, penso no tempo presente, em que cinco bilhões de pessoas já tiveram acesso à internet no mundo e no entanto quase três bilhões de pessoas nem sabem o que é isto. Isto é um problema macroestrutural para se começar a pensar na aprendizagem do amanhã.

No âmbito técnico, precisamos refletir sobre a questão das interfaces gráficas, uma invenção humana para facilitar a mediação sociotécnica na cultura digital, que torna mais “amigável” (termo este utilizado pelos arquitetos da informação) os usos dos objetos técnicos.

Com a interface gráfica, a maioria dos humanos tem uma certa facilidade de aprender a lidar com os softwares e hardwares existentes, desde que estejam em ambientes sociotécnicos com estrutura suficiente de usos e acessos.

Há um segundo nível de aprendizagem em ambientes tecnológicos que é construído por meio de linhas e códigos, de criação de imagens técnicas, segundo Vilém Flusser, que não se configura como algo de fácil aprendizagem.

Por exemplo, não é fácil compreender o funcionamento de algoritmos, big data e internet das coisas, como não é fácil detectar e interpretar inteligência artificial, ou mesmo identificar quando estamos nos comunicando com humanos ou não humanos em uma comunicação sociotécnica, bem como não é fácil configurar os objetos técnicos para navegarmos na internet protegendo nossa privacidade.

Segundo a pesquisadora Shoshana Zuboff, existe uma divisão de aprendizagem na sociedade, em que há uma conjuntura histórico-político-econômico-cultural de estabelecimento de quem tem acesso ao conhecimento. Para Zuboff “As perguntas essenciais que nos deparamos a cada instante são: Quem sabe? Quem decide? Quem decide quem decide?” (ZUBOFF, 2020, p. 215). São perguntas essenciais que precisamos fazer quando pensamos sobre a aprendizagem do amanhã.

Será um desafio para aprendizagem do amanhã pesquisar as interações humanos-não humanos, sem a intermediação de outros humanos nas interações educacionais, uma vez que já estivemos envolvidos em dois discursos pedagógicos que voltaram com muita força nesta segunda década do nosso século. O primeiro é o discurso de viés Liberalista, em que basta dar condições mínimas que as pessoas aprendam livremente. Aqui pode ser até aquele cidadão cheio de boas intenções do outro lado da tela, mas sem conhecimentos pedagógicos suficientes, para sustentar um processo de educação que precisa ser permanente e necessita também dos espaços formais da escola para se realizar; o segundo discurso é o Tecnicista, em que basta uma boa estrutura tecnológica montada que a aprendizagem será facilitada. Ambos deixam em plano secundário a participação de educadores humanos no processo educacional. Aqui eu pergunto: já podemos dispensar a presença de educadores nas relações educacionais, no âmbito do ensino, e nos dedicarmos somente a processos de aprendizagem automatizada?

As pessoas têm mais facilidade mesmo de aprender a lidar com as tecnologias devido a processos de usabilidade e interfaces gráficas mais funcionais, que foram criados a partir de dados comportamentais dos humanos. Então temos de aproveitar mesmo essas dimensões facilitadoras de interfaces com a técnica, mas precisamos saber que existe uma macroestrutura sociocultural, que não age somente cerceando o acesso ao capital, mas interfere sobremaneira na forma como aprendemos a lidar com a técnica.

E assim voltamos às provocações do início deste texto: podemos desvendar o futuro da aprendizagem por meio de uma bola de cristal? Creio que a bola de cristal pode refletir uma realidade um tanto distante do real. Precisamos genuinamente criar aproximações com o real diretamente no contexto desse real. E a cartomante? Ah, isto é coisa para os contos de Machado de Assis.

Leia+

  • A cartomante, de Machado de Assis
  • A era do capitalismo de vigilância – a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder, de Shoshana Zuboff, editora Intrínseca, 2020
  • O universo da imagens técnicas – elogio da superficialidade, de Vilém Flusser, editora Annablume, 2008
  • Filosofia da caixa preta – ensaios para uma filosofia da fotografia, de Vilém Flusser, editora É Realizações, 2018

Até a próxima!



Pensar faz bem com Richard Wurman

Pensar faz bem com Richard Wurman
Pensar faz bem com Richard Wurman