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Artigos, resenhas e crônicas do cotidiano

Com um design festivo na capa, construída em cores azul, amarela, verde, laranja, vermelha, com tons de cinza e de azul, foi lançado o disco Olodum Egito Madagascar, em 1987, uma soluçao criativa oriunda do povo negro e pobre da “zona”, como eram chamadas as localidades do Pelourinho e do Maciel, áreas do centro histórico de Salvador.
Aquela gente já sinalizava nas letras:
O povo negro pede igualdade Deixando de lado as separações
Olodum Egito Madagascar inaugurou um tipo de discurso, que celebrava a África como ponto de fricção: o tom festivo de provocação com o resgate da cultura afro-brasileira por meio de outros sons. O disco elege o Egito – um dos berços da civilização – como ponto de contato para discutir questões sociais que atravessam as relações sociopolíticas que permeiam a vida cotidiana da capital soteropolitana e se estende para os problemas sociais comuns à nação brasileira.
Além das referências ao Egito, o disco redescobre A nação de Madagascar, que até então não era muito reverenciada na Bahia.
O disco é alegre, dançante e inovador ao se apropriar dos meios técnicos existentes na época para produzir arte com base percussiva, aquele acervo de instrumentos marginais que se localizavam no fundo do palco até então, em detrimento dos instrumentos eletrônicos que protagonizavam os trios elétricos e tomavam a frente da música baiana durante o carnaval.
No contexto técnico da época, gerir gravações em que os elementos percussivos fossem os centrais era considerado um trabalho árduo, difícil, um desafio. Reproduzir sons graves em gravações exige uma forma diferente de produzir música, pois corre-se o risco de haver mais distorções no momento da audição pelo ouvinte final.
Em meio à multiplicidade de estilos que se manifestavam nos anos 1970/1980, como música brega, bossa nova, samba-canção, rock popular brasileiro, música sertaneja, o samba-reggae se instaura como uma proposta de fazer sorrir, pensar e reivindicar. No caso específico do carnaval da Bahia, que no final dos anos 1970 passeava entre o samba de influência carioca e o frevo de vertente pernambucana, o samba-reggae surge como uma manifestação cultural originária da Bahia, oriundo das camadas mais pobres das periferias de Salvador.
Se o leitor quiser saber mais sobre a contribuição do samba-reggae para a música baiana, ouça a música que foi produzida na Bahia dos anos 1970 até hoje e dificilmente não encontrará vestígios da música afro-baiana na batida do que até agora foi produzido nas terras de todos os santos.
Os músicos da banda celebram no disco:
Um canto singelo, divino Traz simbolizando Essa negra razão
E se perguntam:
Quem sou eu Negro, negra
Um resgate de identidade e de fortalecimento da estima coletiva de um contingente da população brasileira, que, por meio das festas populares, alertava sobre a necessidade de diminuição das desigualdades sociais que tanto afetam os negros e negras do Brasil-continental.
O disco foi uma abertura de caminhos para um novo fazer musical que já existia dentro das áreas periféricas da Salvador dos anos 1970/1980 e se dirigia para o século XXI como construção identitária soteropolitana, só que era um movimento que até então estava longe das transmissões dos meio de comunicação de massa, daí a importância das gravações percussivas dos anos 1980.
Lembro do primeiro ano do Olodum no carnaval (1980), quando alguns vizinhos, do bairro onde eu morava, saíram para as principais praças de Salvador, em pleno carnaval, com aquelas roupas exóticas, para muitos que não acreditavam que aquele movimento viria para ficar. Eles foram para rua para proclamar a percussão como um elemento fundamental para a criação musical feita na Bahia.
As canções concebidas pelos blocos afros eram cantadas nos becos e vielas, nos arredores das casas simples de Salvador, com textos cujas canções buscavam resgatar e registrar a cultura dos povos originários da África que vieram para o Brasil. E mais: elas buscavam traduzir o pensamento e as expressões dos demais povos de origem africana que se se espalharam pelo mundo, como as expressões advindas da Jamaica, de Cuba e das populações afrodescendentes que viviam em países colonizadores, como França, Inglaterra e Estados Unidos. Daí a forte influência do reggae na música que se produziu na Bahia a partir da década de 1980.
Desbravadores de soluções tecnológicas no ambiente musical, tirando os instrumentos de percussão dos bastidores para a frente dos palcos, na difícil tarefa de articular a voz com os instrumentos musicais percussivos, o Olodum fez História.
Com a música, Olodum, cantores, músicos, técnicos de som, arranjadores e arquitetos de ambientes se unem para dar voz à percussividade, fonte de cultura dos povos vindos da África.
E vivam os 35 anos de Olodum Egito Madagascar!
Dados do disco
O que é? Olodum - Egito Madagascar {LP}
Quando foi? 1987
Onde foi gravado? estúdio WR
Quem distribuiu? gravador Continental
Quem cantou? Lazinho, Tonho Matéria, Suka, Betão
E as músicas?
Lado A
. Madagascar Olodum
. Salvador não inerte
. Ladeira do Pelô
. Olodum florente na natureza
. Raça Negra
. Um povo comum pensar
Lado B
. Arco-íris de Madagascar
. Reggae dos faraós
. Faraó divindade do Egito
. Encantada nação
. Vinheta Cuba-Brasil
Até a próxima!
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Quando menos se espera, aparece um filme de Pedro Almodóvar nas plataformas de vídeo. E aí? Assisto de forma despretensiosa ao filme somente para me divertir? Ou me engajo em uma narrativa cujo histórico do diretor é subverter a ordem da contação de história e nos fazer viajar pelo mundo alternativo do cotidiano, dos fatos inusitados e das histórias que mexem em tudo dentro de nós?
Depois de produzir filmes como Carne Trêmula, Ata-me, Tudo sobre minha mãe, Má educação, Dor e glória, A pele que habito e Maus hábitos ainda há fôlego na veia criativa de Almodóvar?
Confesso que criei muitas expectativas para assistir a Mães paralelas, filme novo de Almodóvar, que revisita o feminino com o olhar sempre arguto de um diretor que consegue articular os limites entre o social e a vida privada cotidiana.
Mas Mães paralelas é esse caminho sem fim que Pedro Almodóvar cria no próprio itinerário profissional para traçar em alguns momentos um voo rasante, em outros, um mergulho em profundidade sobre a existência da mulher. No caso do filme, a narrativa envereda na mulher como mãe, mãe identidade e mãe não identidade, não importa, o que a história retrata são as mães em múltiplas faces: do amor à rejeição, do arrependimento à convicção. No filme o diretor consegue nos oferecer uma espécie de múltiplos pontos de observação sobre as dimensões da mãe e do feminino.
E Mães paralelas não fica somente na Base falando somente de aspectos íntimos e psíquicos do feminino, ele avança na Superestrutura e nos convida a refletir sobre a solidão profunda das mulheres quando o assunto é a maternidade. Na história os planos individuais e coletivos estão entrelaçados, mesmo quando é difícil enxergar tais entrelaçamentos. Os tempos passam, e as mulheres ainda continuam assumidas como mães sob diversas circunstâncias sociais, mesmo quando a maternidade é uma existência de negação.
Junto com toda a problemática das maternidades, Almodóvar dirige a narrativa para problemas históricos que ainda estão encravados em nós, como a luta para transformar nossa ancestralidade em parte da História, um resgate de vida pessoal dentro do contexto social das controversas vivências políticas pelas quais a humanidade passou no século XX e continua a passar no século XXI. É preciso assistir ao filme!
Penélope Cruz protagoniza a história e leva o espectador a uma vivência dramática do que é ser mulher. Ela e Almodóvar se combinam e se completam. O desempenho da atriz é como goles saborosos de um vinho que deixamos fermentar durante anos e agora faz-nos deleitar tanto pela via do pensamento e conhecimento histórico, quanto pelos sentimentos produzidos a cada sequência da narrativa.
É preciso parar por aqui e convidar o leitor a ir à fonte: saborear cada gole do vinho e dá-se o direito de se embriagar em momentos tão sublimes da arte cinematográfica por meio das múltiplas faces de Pedro Almodóvar.
***
Dados da obra:
O que é? Mães paralelas {filme}
Quem dirigiu? Pedro Almodóvar
Quem produziu o roteiro? Pedro Almodóvar
Quem protagonizou? Penélope Cruz, Milena Smit e Israel Elejalde
De quando é? 2021
Qual o tempo de exibição? 2 h 2 min
Qual a origem? Espanhola
Onde assisto? Plataforma Netflix
***
Até a próxima!
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Dias desses peguei o smartphone e comecei a admirá-lo, como a gente se admira diante de um espelho. Naquela admiração narcisista surgiu uma nuvem cheia de objetos que representavam toda minha vida dentro daquele objeto.
No aparelho estava armazenada todos os meus afazeres, todos meus pecados e conquistas. Daquela alucinação refletida, os primeiros objetos a sair foram os dados sobre quem eu devia, a quem eu paguei, onde eu comprei e quanto eu tinha de poupança.
Depois vieram os dados dos meus conhecidos, dos amigos e dos parceiros comerciais. Era muita coisa que saía daquele aparelhinho. Por uma brecha surgiram o título de eleitor, a carteira de motorista e o documento do carro.
Ah, eu tenho umas mensagens secretas e pensava que ninguém poderia ver. Será verdade?
Vinham atrás os dados sobre onde eu almoçava, a que cinema eu ia, com que frequência eu ia ao shopping. Acha pouco? Também saíram de lá a quantidade de água que bebo, o nível de sedentarismo que tenho, os batimentos cardíacos, o tempo de sono e a quantidade de quilômetros que percorro com caminhadas ou corridas.
Não bastasse tudo isto, em uma cor ruborizada, escaparam de lá sentimentos do dia a dia como gostei, não gostei, me irritei e por aí vai…
Já perto do final apareceram os sites que visito e as mídias sociais que uso no cotidiano. Aquilo não iria parar?
Ah, eu me senti nu em ver tantas coisas íntimas saindo como fumaça para que todos pudessem ver. Meu smartphone é uma verdadeira caixa de pandora. E mais: a última coisa que sai de lá não é a esperança como narrado na mitologia, mas o que sai de lá mesmo é a desesperança de não ter mais estes dados como de acesso exclusivo meu, mas como herança da nova vida compartilhada.
Até a próxima!
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