O pensamento faz bem com Vilém Flusser – Inquietações

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A construção da cidadania brasileira e os sistemas de cotas

Cotas & Cidadania
Cotas & Cidadania

O Brasil foi formado por meio da inserção de muitos sistemas de cotas, políticas estas historicamente construídas para produção de desigualdades.

Vejamos: que dizer dos colonizadores portugueses que aqui chegaram e foram beneficiados por meio de cotas de latifúndios, o que resultou em um dos sistemas de aprofundamento de desigualdades mais severos de apropriação de bens públicos? E não parou por aí: anos mais tarde o Estado brasileiro iria criar o sistema de cotas das Entradas e Bandeiras, o qual um grupo seleto de exploradores iria se apropriar de mais terras, negando aos povos originários viver nas regiões onde eles nasceram.
E no século XX não foi diferente, quando o Estado brasileiro concedeu novas cotas de terras e de trabalho aos imigrantes europeus que aqui chegavam, deixando para trás toda uma comunidade de origem africana sem terras quando esta era a maior produtora de riquezas do país.
E o que dizer da cota da aparência? Ainda persiste no Brasil um sistema rígido de cotas para as pessoas que a sociedade considera como bem afeiçoada: pele clara, cabelos lisos, olhos claros, fechando as portas do mercado de trabalho para quem não se enquadre em tal perfil.
E a cota da amizade? Aquela em que as pessoas concedem benefícios para os amigos e parentes, impedindo os que não têm proximidade com os grupos de poder fiquem mais distantes ainda das oportunidades de trabalho.
E as cotas étnicas, de possibilitar que pessoas de determinadas origens ganhem mais do que outras devido às diferenças de cor da pele, orientação sexual, origem social ou gênero?
Para equilibrar esse estado de cotas existentes no Brasil, foi necessário criar políticas sociais para dar acesso às pessoas menos favorecidas a direitos básicos de cidadania, como trabalho, educação e saúde.
Historicamente faço parte do grupo dos desfavorecidos deste país e tive de passar parte da vida custeando minha educação com a força de muito trabalho.
Foi somente em 2019, aos 56 anos, que pude participar de processo seletivo para o doutorado em Educação da Universidade Federal da Bahia, o qual fui aprovado por meio do sistema de cotas destinado aos afrodescendentes. Vamos detalhar este itinerário?
Estudei em escola pública no ensino médio e na infância vivi dentro de um quadro de pobreza, como a maioria dos brasileiros.
Aos 19 anos fui trabalhar em uma cidade distante de Salvador, Bahia, e tive de adiar o sonho de fazer um curso superior para melhorar a condição socioeconômica da família.
Entrei na universidade aos 24 anos. A instituição era particular e não havia políticas públicas para ajudar financeiramente os cidadãos trabalhadores que precisavam estudar, ao não se o cidadão tomasse empréstimo para pagar quando se formasse, o que deixou muitos brasileiros endividados ao terminarem o curso de graduação.
Passei cinco anos e meio em uma licenciatura e só tive alívio financeiro no último semestre do curso, pois só faltava uma disciplina (hoje se chama componente curricular), e a instituição de educação não cobrou mensalidades naquele semestre.
Aos 46 anos, pude pagar novamente por um curso de mestrado em uma instituição particular, o que foi um diferencial na minha vida de trabalhador.
Da licenciatura até o mestrado, fiz cinco cursos de especialização, pois era a maneira plausível de eu continuar estudando durante a noite e conseguir melhorias financeiras para manutenção da família e para custear a própria educação. Mesmo depois de ter terminado o mestrado ainda tive de fazer um novo curso de especialização, pois o trabalho assim o exigia, e novas despesas tiveram de ser realizadas.
Enquanto eu gastava dinheiro em mensalidades e compras de materiais de estudos (livros, LP, DVD, revistas, idas ao cinema ou ao teatro, para aprender mais), testemunhei muitos colegas de trabalho formarem um bom patrimônio econômico-financeiro e usarem o dinheiro para entretenimentos diversos. O que gastei em educação daria para comprar hoje uns três ou quatro carros compactos ou um imóvel razoável em uma cidade como Salvador, mas, sem arrependimentos, investir em educação.
Nos quatro anos no doutorado, aprendi muito e participei de muitas atividades como auxiliar na organização e coordenação de seminários, escrever textos sobre ciência para os meios de comunicação de massa, produzir pesquisa e fazer comunicação científica nos meios acadêmicos. Quer dizer, o dinheiro que o Estado brasileiro investiu em minha formação durante o doutorado, foi sendo devolvido à sociedade brasileira, durante o próprio curso, na forma de produção e difusão de conhecimento. Por meio do sistema Lattes, o leitor poderá consultar o currículo e verificar os detalhes da produção feita.
E mais: concluí o curso nove meses antes do prazo regulamentar exigido para conclusão de um curso em nível de doutorado, o que já facilitou a entrada na pós-graduação de um novo estudante.
A realidade que experienciei não foi igual em relação aos pretos, pretas e pobres que estavam cursando a pós-graduação, pois durante a permanência no doutorado, percebi que muitos estudantes tinham dificuldades de continuar os estudos, por causa de pouco dinheiro para custear alimentação, estadia, material de estudos e viagens acadêmicas. As bolsas eram poucas, com valores muito baixos e ainda sem reajustes, o que sinalizava que o sistema de cotas ainda precisava se aperfeiçoar.
A partir do pequeno relato, posso testemunhar para o leitor que a política de cotas nas instituições de educação superior é algo revolucionário para a diminuição das desigualdades neste país. É um meio plausível de construção da cidadania para uma parte significativa de cidadãos, que de algum modo se encontram em situação de vulnerabilidade. E hoje tenho orgulho de afirmar: entrei por meio de cotas, sim, e é preciso que mais cidadãos e cidadãs se beneficiem desse tipo de política social.
Até a próxima!

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Ilê Aiyê – uma caminhada de 50 anos

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O largo do Campo Grande (também conhecido como praça Dois de Julho), em Salvador, estava lotado de gente esperando para ver os desfiles do Afro Fashion Day Estilistas e Modelos!. O evento completou dez anos de existência e, a cada ano, a audiência só aumenta. Só de ver aquela multidão desejosa de assistir ao Evento já me senti feliz.

Mas eu estava muito dividido porque naquela mesma noite de primeiro de novembro de 2024, a Concha Acústica, espaço de entretenimento em Salvador, também estava lotada de gente para celebrar os 50 anos de existência do Ilê Aiyê, uma instituição multicultural, que trabalha cotidianamente para a inserção dos afrodescendentes na economia, educação, lazer, artes e tudo que possa aproximar os descendentes de africanos da cidadania brasileira.
Ao me dirigir do Campo Grande para a Concha Acústica, vi passar um jovem negro, cabelos encaracolados, de óculos, com uma camisa multicolorida. Alguém tocou no braço do rapaz e disse que o pessoal da filmagem já havia chegado, pensando que ele estava ali para trabalhar.
O rapaz é jornalista e trabalha em uma emissora de televisão local. No meio da escadaria que leva à Concha, notei que o jornalista se encontrou com umas cinco pessoas e ao olhar com mais cuidado para o grupo, percebi que eram todos jornalistas da emissora. Eles estavam muito radiantes em ir ao show de 50 anos do Ilê e mais radiante estava eu por ver a juventude negra ocupando espaços no jornalismo baiano.
O motivo da felicidade não foi à toa, pois há 50 anos quando o Ilê se organizou e foi para as ruas do carnaval da Bahia, a recepção dos meios de comunicação não foi tão afetuosa, pois a instituição recém-criada inaugurava uma forma diferenciada de fazer política no carnaval da Bahia, chamando a atenção para os processos de racismo e discriminação existentes em relação aos negros ou como diriam Caetano Veloso e Gilberto Gil, os quase brancos e os quase pretos.
Pois é, só em ver aqueles jovens no momento de folga irem assistir ao show do Ilê demonstra uma significativa mudança nas relações sociais dentro da Bahia, como a de termos afrodescendentes trabalhando na imprensa local e ainda valorizando as produções culturais afrocentradas.
O show de 50 anos fez uma retrospectiva musical da história da Instituição e contou com a participação especial de Daniela Mercury, BaianaSystem, Carlinhos Brown, Beto Jamaica, Aloísio Menezes, Orquestra Afrosinfônica, Amanda Maria e Matilde Charles: como é diversa a produção artística deste povo?
Cantei, dancei e refleti sobre os últimos 50 anos de minha vida, atravessados pela existência de entidades como o Ilê Aiyê, que por meio da arte, da educação e do trabalho estimulam o desenvolvimento da estima coletiva dos descendentes dos povos africanos. Durante a festa meu corpo virou linguagem e minha alma resplandeceu. “Valeu, Zumbi!” - “Ah, se não fosse o Ilê Aiyê”.
Até a próxima!

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O pensamento faz bem com John Thompson II

Pensar faz bem!
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A seção Pensar faz bem! traz para os leitores reflexões de diversas áreas do saber, vinculadas à cultura e ao cotidiano. Os textos Pensar faz bem! são frutos das leituras que fazemos para construção dos artigos, crônicas e resenhas aqui publicados. O pensamento da quinzena é de John Thompson.
Boas reflexões!

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