Existência na morte – existência na vida

A sete palmos
A sete palmos

Foi com Machado de Assis que tive mais proximidade com temas como o da loucura (O alienista) e o da morte (Memórias póstumas de Brás Cubas). Machado foi um intelectual lapidar ao discutir questões sobre a existência de tamanha relevância, usando o humor de forma inteligente, fazendo-nos mergulhar em temas que são muito difíceis de serem discutidos.

Sobre a morte como tema ficcional me deparei nos últimos três meses com a série estadunidense A sete palmos. A sete palmos traz múltiplos enfoques sobre a morte e sobre a vida das pessoas, ao articular momentos de existência relacionados à morte por meio da pluralidade de visões sobre o existir.

Na série, de forma inesperada, um patriarca de uma típica família estadunidense morre de abruptamente, com o acontecimento resultando em uma mudança na maneira como a família do falecido iria viver dali em diante.

Assim, a partir do tema da morte, o espectador vai vivenciando as formas de viver de uma dona de casa que de repente se ver viúva e precisa se ressignificar. Assiste aos altos e baixos da vida conjugal de um casal de homossexuais, na labuta de se constituir como família. Observa a saga de um filho que precisa entender-se no movimento de entrar e sair das relações familiares depois de um forte infortúnio na família.

É também testemunha dos movimentos feitos por uma família de descendentes de imigrantes latino-americanos na busca para conquistar uma identidade na hierarquia societária estadunidense. Acompanha os dilemas e as contradições de uma família de classe alta estadunidense, observando os valores que vão sendo expostos a cada vivência daquelas pessoas.

Pois é, são muitas histórias que se cruzam e vão dando vida (ou seria morte?) à narrativa multifacetada de A sete palmos.

Em todos esses contextos em que essas personagens navegam, a morte está instalada. Ela, a morte, sussurra, grita, chora e sorri. O sentido da morte é a força propulsora do muito o que dá vida à narrativa. Em A sete palmos, a loucura é o outro fator dá sustentação para as pessoas viverem, porque não é fácil lidar com a morte enquanto se vive.

Se Machado de Assis exerceu influência profunda na maneira como eu me fazia existir diante da morte, em A sete palmos, pude descobrir que vida e morte não se separam; na verdade, elas são sim duas dimensões em continuum: duas faces da nossa moeda chamada existência. Haja loucura para viver e para morrer.

Até a próxima!

Navegue+

Continuar lendo “Existência na morte – existência na vida”

E o bispo chorou

Imagem com fundo amarelo, tendo à direita um símbolo da igreja Católica; à direita uma imagem do monsenhor Gabriel
Monsenhor Gabriel

Dia 13 de setembro foi um dia histórico para a comunidade afrodescendente do estado da Bahia, pois foi ordenado bispo auxiliar da Arquidiocese Metropolitana de São Salvador da Bahia: Gabriel dos Santos Filho.

Gabriel, ou melhor Monsenhor Gabriel, é homem negro nascido e criado na velha São Salvador. Ele circulou muito, como padre, em bairros como IAPI, Liberdade e Pelourinho, um conhecedor do cotidiano da periferia de Salvador.

Monsenhor Gabriel fez filosofia e teologia na graduação, depois fez especialização em Antropologia e mestrado em Ciências Sociais. Atualmente é doutorando em Antropologia na Universidade Federal da Bahia.

Gabriel é um cidadão que conhece as letras e um pouco da vida de toda gente de algumas comunidades da primeira capital do país. Gabriel é um cidadão que faz cotidianamente a leitura de mundo e a leitura da palavra, nas palavras de Paulo Freire. 

Durante a ordenação episcopal Gabriel chorou, chorou por ter alcançado um desejo pessoal e um objetivo social: inscrever na história da Bahia o registro do primeiro cidadão negro, nascido em Salvador, a ser bispo daquele lugar, um esperançar, como diria Paulo Freire (novamente), e que caracteriza o que alguns segmentos da sociedade chama de “resiliência”. Os negros são seres de resiliência, pois dificilmente desistem de continuar a construção de objetivos maiores de emancipação da comunidade afrodescente.

As portas das igrejas católicas no Brasil precisaram ser abertas por cidadãos como Gabriel, um ser de comunicação, um homem de comunidade, palavra e ação. As portas foram abertas com palavras de amor, concretizadas no discurso de posse do Monsenhor.

Conheci Monsenhor Gabriel, quando era padre, entre o final do milênio anterior e o início do atual. Uma colega de faculdade me indicou um curso para preparação de jovens e adultos da periferia para que estes alcançassem o nível superior.

Gabriel era o líder espiritual do grupo de professores e coordenadores pedagógicos que trabalhava voluntariamente para a melhoria das condições educacionais dos jovens e adultos, com preocupação especial com os afrodescendentes, do bairro do IAPI, Salvador, Bahia, e arredores.

Os professores e coordenadores pedagógicos voluntários deram o nome de Quilombo Milton ao grupo, em homenagem ao geógrafo brasileiro Milton Santos, um dos grandes pensadores brasileiros.

Foram quatro anos de contato com o Monsenhor, que estava sempre preocupado em cultivar a fé e a esperança no grupo de professores. Foram também momentos de muita aprendizagem com aquele grupo de professores voluntários e com os jovens e adultos que por ali passaram em busca de melhorias de vida.

O 13 de setembro está gravado em minha memória como um dia de construção histórica, afinal de contas foram necessários 476 anos (período de existência da cidade de São Salvador) para que um cidadão negro soteropolitano alcançasse uma função de destaque dentro da hierarquia da igreja católica na Bahia.

O momento é de celebração e de construção de novos rumos em direção à formação de outras estruturas nas instituições religiosas na Bahia, em que a diversidade possa aflorar como um desígnio de transcendência.

Até a próxima!

Navegue+

Continuar lendo “E o bispo chorou”

Pensar faz bem com Antônio Carlos e Jocafi

Pensar faz bem!
Pensar faz bem!
Trecho da música Você abusou, de Antônio Carlos e Jocafi
Pensar faz bem com Antônio Carlos e Jocafi
Continuar lendo “Pensar faz bem com Antônio Carlos e Jocafi”

O legado de Antônio Carlos e Jocafi

O legado de Antônio Carlos e Jocafi
O legado de Antônio Carlos e Jocafi

Entre os anos 1960 a 1970 houve uma migração significativa de artistas da música baiana que se dirigiam para o Rio e São Paulo. Dentre esses músicos é preciso destacar o movimento feito pelos cantores e compositores Antônio Carlos e Jocafi, uma dupla que levou a cultura musical baiana para o Brasil e para o mundo.

A dupla era e continua sendo muito criativa, pois das veias inventivas da dupla surgiram obras-primas em forma de trilhas sonoras de filmes e novelas, além de uma relevante coletânea de músicas em homenagem aos personagens femininos da obra literária de Jorge Amado.

Em Antônio Carlos e Jocafi houve uma forte influência afro-brasileira, com o primeiro expressando traços da cultura do candomblé e o segundo, traços do samba de roda da Bahia.

O legado da dupla está impregnado na música baiana produzida no século XXI, e músicos como Russo Passapusso conseguem expressar isso nas produções eletroacústicas que podemos ouvir em bandas como a BaianaSystem.

Antônio Carlos e Jocafi e Russo Passapusso têm uma ligação transcendente, pois quando os três estão unidos o híbrido entre o profano e o sagrado se projeta em um movimento de transformação da vida.

Ouvir Antônio Carlos e Jocafi é ouvir contemporaneidade, pois a arte construída pelos dois atravessa os tempos, instaurando diferenciadas formas de interagir com a arte.

Se o leitor ainda não conhece Antônio Carlos e Jocafi precisa conhecê-los de imediato para se contaminar com umas das coisas que o  Brasil faz de melhor: a música.

Para início de conversa, por que não assistir ao Sem censura da última sexta-feira? Lá você terá a oportunidade de beber um pouco da água da cultura produzida pela dupla, em uma entrevista muito rica sobre parte da construção da arte brasileira.

Fica a dica e até a próxima!

Navegue+

Continuar lendo “O legado de Antônio Carlos e Jocafi”

Pensar faz bem com Arlindo Cruz

Pensar faz bem com Arlindo Cruz
Pensar faz bem – 2025
Pensar faz bem com Arlindo Cruz
Continuar lendo “Pensar faz bem com Arlindo Cruz”

Bezerra da Silva, produto do morro

Produto do morro
Produto do morro

Passei a adolescência lendo textos de grandes cronistas do século XX, como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e o excepcional Rubem Braga.

Com esses autores fui percebendo como era bom viver o cotidiano, perceber-me no aqui e agora, observando as rotinas das pessoas que de alguma forma podiam comungar comigo gestos da cultura brasileira.

Com os escritores cronistas e gente como Machado de Assis, Lima Barreto e Jorge Amado, fui pegando gosto pela leitura e aprendendo a observar o quanto de poético havia na vida das pessoas comuns: era preciso aperfeiçoar o olhar para o que era comum.

Mas minha vida não foi movida só pelos cronistas das letras; também os cronistas das músicas foram influenciando minha existência. Ouvia muito Martinho da Vila com aqueles sambas cadenciados e com aquelas histórias que tinham muita proximidade com o que eu vivia no bairro periférico de Salvador.

Crônicas como Construção, A banda e Geni e o Zepelim, de Chico Buarque, e Procissão e Domingo no Parque, de Gilberto Gil, foram lapidando minha leitura de mundo, fazendo eu descobri novas formas de interagir com a vida.

Um objeto de arte se converte em crônica quando consegue traduzir o cotidiano de forma direta e sofisticada, como é o caso das crônicas-canções expressas por tantos intérpretes brasileiros.

Bezerra da Silva foi um dos cronistas musicais que influenciou a forma de eu ver o mundo dos periféricos e marginalizados. O estilo Bezerra de cantar o cotidiano da periferia era diferenciado. O morro carioca em Bezerra era estado de arte, pois ele sabia ressignificar o modo de viver das pessoas pobres das comunidades do Rio de Janeiro do final do século XX.

Uma obra de Bezerra da Silva cheia de crônicas da vida das pessoas da periferia é o álbum Produto do Morro. Na capa do disco Bezerra aparece sorrindo, saindo de uma caixa de mercadorias, com os dizeres: Produto do Morro. O cronista surge com um pandeiro na mão, sorrindo descontraidamente, rodeado de instrumentos musicais muito usados na composição de samba de partido alto carioca.

Na capa de fundo aparece um desenho de Bezerra da Silva tocando o pandeiro e atrás há outra caixa de produto do morro, com uma diversidade de pessoas representativas da vida na periferia. No vinil há letras sobre religião, homossexualidade, relações amorosas, violência e outras coisas mais. Tudo sincronizado para retratar o viver carioca da época.

É preciso ouvir…

Quanto às crônicas, elas foram penetrando em meu ser pelos olhos e pelos ouvidos, invadindo o corpo, indo direto para o coração, o que foi ótimo para mim, que tive a oportunidade de conhecer as histórias da classe média brasileira da segunda metade do século XX, por meio dos nossos escritores clássicos, assim como a vida dura e criativa dos cidadãos da periferia, por meio de melodiosos sambas de artistas como Bezerra da Silva.

Até a próxima!   

Continuar lendo “Bezerra da Silva, produto do morro”