Uma pessoa em nosso tempo pode pertencer aos meios cultos sem nunca ter pensado no destino humano como os gregos pensaram, ou nunca ter contemplado as constelações visíveis nas diferentes estações. Ela só conhece a via-láctea reproduzida nos livros e se crê superior aos pastores da Ásia que contemplavam estrelas. E se acha superior aos que trabalham com as mãos ou cultivam a terra, pois ela própria se diz uma pessoa cultivada.
Ecléa Bosi, em Cultura e desenraizamento, em Cultura brasileira – temas e situações, organização de Alfredo Bosi, p. 18
Quem influenciou quem na música da Bahia? Os Doces Bárbaros (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa) foram seguidos pelos novos músicos baianos dos anos 1970-1980 ou os novos músicos baianos dos anos 1970-1980 foram seguidos pelos Doces Bárbaros?
É uma questão difícil de ser respondida. O que sei é que há muitos traços da nova música produzida na Bahia nos anos 1970-1980 e também há muitos traços nas músicas criadas e interpretadas por Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil naquele período. Maria Bethânia sempre esteve próxima da música produzida no Recôncavo Baiano e das manifestações aproximadas com as matrizes religiosas afro-brasileiras. Não à toa, ela gravou Reconvexo, de Caetano Veloso, e Salve as Folhas, de Ildásio Tavares e Gerônimo, registros artísticos onde se percebem os nítidos traços da música baiana produzida na época. Caetano Veloso e Gilberto Gil construíram canções fundamentais naquele período como, Marcha da tietagem, Filhos de Gandhi, Afoxé, de Gilberto Gil, e Atrás do trio elétrico e Badauê, de Caetano Veloso. Os dois compositores viveram muitos momentos nos desfiles das agremiações do carnaval da Bahia do período 1970-1980. Já vi Caetano Veloso em cima dos trios do Baiana System e Cortejo Afro. Gilberto Gil já andou muito pelas ruas de Salvador cantando com os Filhos de Gandhi. Gilberto Gil já cantou nos palcos do Ilê Aiyê, e Caetano Veloso foi intérprete de uma música do primeiro disco do Ilê. Já Gal Costa lançou o icônico disco álbum Plural (RCA, 1990), com músicas como Salvador não inerte (Bobôco e Beto Jamaica), Ladeira do Pelô (Betão), Brilho de beleza (Nego Tenga) e Zanzando (Carlinhos Brown). Haja fôlego para tanto intercâmbio! O que sei e vivi foi testemunhar um casamento harmonioso e cheio de criatividade entre os Doces Bárbaros e os artistas do Axé Music. Até a próxima parada!
Nos textos aqui criados está evidente uma preocupação em resgatar no movimento Axé Music as influências de matrizes africanas sobre a cultura baiana. É nada melhor do que trazer um pouco da produção fonográfica dos blocos afros e afoxés que tão bem fizeram uma arqueologia da cultura africana que foi ressignificada dentro da cultura baiana. O primeiro registro que traremos aqui é o do álbum Núbia Axum Etiópia, do Olodum. Vamos lá?
Um dos propósitos dos blocos afros desde os momentos iniciais em que foram concebidos era de cultivar a ideia de coletivismo entre os integrantes das agremiações afro-baianas, e isto ficou evidente no álbum Núbia Axum Etiópia, lançado em 1988 pela Continental. Era o ano dos 100 anos da promulgação da Lei Áurea, em que as desigualdades de toda ordem ainda continuavam atravessando a sociedade brasileira e que lutar ainda era preciso, segundo os princípios filosóficos do Olodum. Para o leitor ter uma noção do sentido de coletividade no Olodum, Núbia Axum Etiópia foi construído envolto de contribuições de vários músicos, cantores e compositores, que produziram uma obra de arte com os olhos na África, em um ritmo que cruzada os sons afro-brasileiros com os da cultura jamaicana também, outra cultura que ressignificou a cultura africana. No encarte do álbum, uma mensagem para os ouvintes, demonstrando o quanto de compromisso político havia nos artistas comprometidos com a música afro-baiana: “Este disco é dedicado a Nelson Mandela, ao Movimento Negro Brasileiro, ao Maciel-Pelourinho, a Socialista Etiópia, a força e luz do Rastafarismo, a João Rodrigues da Silva (+), a nossa luta contra o racismo no mundo, contra o apartheid, pela paz mundial e contra todas as formas de guerra.” Grupo Cultural Olodum Ainda sobre a coletividade, além dos cantores e compositores, a banda do Olodum tinha como instrumentistas mestre Neguinho do Samba, na regência e nos timbales, Mapia, Dedezinho, Melo, Carranca e Nelson na marcação II, Fernando Macaé e Coroa na Marcação I, Long-Dong na caixa, Memeu, Ivan e Roseval no repique, Cristina Rodrigues, Alice, Euzébio Cardoso, Nego e Germano no coro, e Bira Reis, Euzébio Cardoso e Felipe Cavalieri nos efeitos (metais). Para dar um gostinho do disco, trazemos abaixo um pouco dos conteúdos da letras, para o leitor se deliciar:
“O povo trazido do seio da África Fez o Pelourinho virar páginas Trouxeram o primeiro, o segundo e terceiro E foram tantas cabeças que não sei contar a a a… (..) Espalharam o negro no mundo intereiro Para, para para nos enganar á á á (...) Vai Olodum e ensina esse povo a lutar Com seu canto forte Olodum Esses guetos precisam acabar” Em um outro momento: “Aids se expandiu E o terror já domina o Brasil Faz denúncia Olodum Pelourinho E lá vou eu..”
Querem saber quem eram os intérpretes e compositores de Núbia Axum Etiópia, gente?
Entre o elétrico e o percussivo no carnaval da Bahia
O movimento Axé Music sofre influência sobremaneira do intercâmbio entre a música de base eletrônica, via guitarra, principalmente guitarra baiana, e os elementos percussivos cujos ritmos eram oriundos da África.
Neste sentido, os Novos Baianos têm papel fundamental nessa mistura, pois foi nos primeiros acordes da guitarra de Pepeu Gomes e nas vozes de Paulinho Boca de Cantor, Baby do Brasil, inicialmente conhecida como Baby Consuelo, e Moraes Moreira, que os primeiros trios elétricos foram aos poucos desfilando ao som de vozes e instrumentos eletrônicos e percussivos. Os Novos Baianos, apesar de pioneiros em jogar uma banda comum em um trio elétrico, não chegaram a gravar um álbum dedicado ao carnaval da Bahia, mas as experimentações deles em cima do trio elétrico influenciaram muito a efusão de bandas de Axé Music no carnaval baiano durante anos 1980-1990. Quanto à efusão de cantores em cima de trios elétricos, misturando tudo, do galope ao baião, do frevo ao reggae, do samba de roda ao samba-reggae, é preciso destacar os trabalhos do Armandinho, Dodô e Osmar, registrados nos álbuns Eletrizando o Brasil, com participação especial de Moraes Moreira (Music Color, 1983) e Aí eu liguei o rádio (RCA, 1987), dois trabalhos fundamentais para quem deseja entender a transição dos trios elétricos de alto falantes para os trios elétricos com as modernas caixas de som que produziam um som de alta fidelidade. Nos dois trabalhos, é possível perceber o trânsito dos artistas entre a influência do frevo pernambucano no carnaval da Bahia, para a ressignificação do Ijexá, resultando em vários tons musicais e dando nova forma à música baiana. Naquele momento a cultura baiana não ficava mais presa aos acordes do frevo nem aos batuques das escolas de samba. A cultura baiana ressignificava não somente o frevo e o samba carioca, construindo identidade musical própria como também trazia para os círculos musicais baianos as sonoridades do reggae, do baião, do rock e do galope, tal qual se faz uma feijoada em uma cozinha baiana: tudo misturado, mesmo quando as dinâmicas sociais, raciais e econômicas da época não estivessem favoráveis para as mudanças que se anunciaram naquela época. Até a próxima parada!
Memórias do Axé Music - número 5 Ligações entre os Doces Bárbaros e o Axé Quem influenciou quem na música da Bahia? Os Doces Bárbaros foram seguidos pelos novos músicos baianos dos anos 1970-1980 ou os novos músicos baianos dos anos 1970-1980 foram seguidos pelos Doces Bárbaros? É uma questão difícil de ser respondida. O que sei é que há muitos traços da nova música produzida na Bahia nos anos 1970-1980 e também há muitos traços nas músicas criadas e interpretadas por Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil naquele período. Maria Bethânia sempre esteve próxima da música produzida no Recôncavo Baiano e das manifestações aproximadas com as matrizes religiosas afro-brasileiras. Não à toa, ela gravou Reconvexo, de Caetano Veloso, e Salve as Folhas, de Ildásio Tavares e Gerônimo, registros artísticos onde se percebem os nítidos traços da música baiana produzida na época. Caetano Veloso e Gilberto Gil construíram canções fundamentais naquele período como, Marcha da tietagem, Filhos de Gandhi, Afoxé, de Gilberto Gil, e Atrás do trio elétrico e Badauê, de Caetano Veloso. Os dois compositores viveram muitos momentos nos desfiles das agremiações do carnaval da Bahia do período 1970-1980. Já vi Caetano Veloso em cima dos trios do Baiana System e Cortejo Afro. Gilberto Gil já andou muito pelas ruas de Salvador cantando com os Filhos de Gandhi. Gilberto Gil já cantou nos palcos do Ilê Aiyê, e Caetano Veloso foi intérprete de uma música do primeiro disco do Ilê. Já Gal Costa lançou o icônico disco álbum Plural (RCA, 1990), com músicas como Salvador não inerte (Bobôco e Beto Jamaica), Ladeira do Pelô (Betão), Brilho de beleza (Nego Tenga) e Zanzando (Carlinhos Brown). Haja fôlego para tanto intercâmbio! O que sei e vivi foi testemunhar um casamento harmonioso e cheio de criatividade entre os Doces Bárbaros e os artistas do Axé Music. Até a próxima parada!